Um Lugar Qualquer (Somewhere, 2010) começa com uma sequência que já pode ser considerada icônica: uma Ferrari anda em círculos, evidenciando que seu motorista está sem rumo, ou que apenas quer dar umas voltas sem compromisso. Esse momento inicial gera um certo atordoamento, pois não se sabe ainda quem está conduzindo aquele veículo, e o desconforto dura aproximadamente 2 minutos. Essa cena já dá conta de dimensionar a plateia para a proposta de cinema na qual Sofia Coppola investe dessa vez. A diretora de Encontros e Desencontros (Lost in Translation, 2003) e Maria Antonieta (Marie Antoinette, 2006) quer falar sobre o tédio e a vacância de afeto no coração.
E o tipo para levantar essa discussão é Johnny Marco (Stephen Dorff), um ator de filmes de ação (termo cada vez mais vulgar) que leva a vida na maciota, por assim dizer. Ele é o arquétipo das celebridades da cultura de massa, que arrasta um séquito de súditos pelos espaços que percorre, mas que esconde uma essência inócua, reforçada pelos dias e noites de tédio que vivencia, um após o outro. Talvez a expressão máxima desse comportamento entediado e entediante se configure em uma cena apresentada logo no princípio do longa: enquanto está deitado na cama de um dos muitos hotéis por que passa, ele assiste a duas irmãs gêmeas e louras se desdobrando na pole dance. Mas a imagem delas, em vez de lhe causar excitação, deixa-o sonolento. Elas terminam o que foram fazer ali de modo protocolar, arrumando seus objetos em seguida, e Johhny fica estático em sua cama, dominado pelo sono. A sequência ganha uma quase repetição minutos depois, quando elas voltam a dançar e, dessa vez, encantam o ator.
O comentário sobre essas duas cenas já pode servir para encaminhar o espectador para a percepção de que Um lugar qualquer é construído por meio da delicadeza, que serve como uma aura para a trajetória algo dilacerante vivida por Johnny Marco. Coppola está interessada muito mais no homem que no astro, e isso fica claro nos primeiros fotogramas. Como fez em Encontros e Desencontros, a diretora desconstrói o aspecto artístico de seu protagonista para entender o que se passa em seu âmago. O filme apresenta um ritmo propositalmente arrastado, que contribui para que se note que o cotidiano de Johnny não é nada glamouroso, mas sim aflitivo para ele, que tem de cumprir uma agenda interminável de compromissos relativos à promoção de seus filmes.
A possibilidade de revisão de seus passos se instaura na figura adorável de Cleo (Ellen Fanning), a filha única de 11 anos do ator, que vai visitá-lo. Inicialmente, ela passa poucos dias com ele, como parte do acordo feito com a mãe da menina, e logo se percebe o quanto ela é capaz de injetar alegria à rotina monótona do pai. Há uma cena que traduz bastante o espírito de análise do tédio feito pela cineasta, quando Johnny leva a filha para uma de suas aulas de patinação no gelo. Os planos-sequência que mostram a garota deslizando na pista se alternam com a expressão cansada do protagonista, que antes de chegar ali nem sabia exatamente que a menina se exercitava naquele esporte, confundindo-se e perguntando a ela sobre o balé. Sofia se detém por um bom tempo no espetáculo particular na menina, e esse é um dos elementos que pode servir de justificativa para alguns espectadores classificarem o filme simplesmente como “chato”. No fundo, trata-se de uma obra permeada por simbolismos, que fazem uma ponte entre em cinema palatável e outro mais angustiante.
A convivência entre Johnny e Cleo torna-se mais intensa depois que, sem mais nem menos, a mãe da garota pede para que o pai tome conta dela por tempo indeterminado. Então, ela passa a acompanhá-lo em suas viagens de trabalho, e trafega no universo esnobe das “estrelas” que ele enfrenta todos os dias. Cleo se mostra uma menina madura e responsável, que nunca se deslumbra com os ambientes chiques e caros que eles frequentam, talvez por já estar plenamente habituada e inserida neles. Por meio desse contato mais estreito, a vida de Johnny ganha mais vivacidade, e Sofia demonstra mais uma vez um apreço por retratar uma relação paternal, dessa vez literal, diferentemente do que fizera em Encontros e Desencontros. Aliás, Um lugar qualquer guarda semelhanças nítidas com seu filme retrasado. A diferença é que, nesse último, a diretora dá um tratamento mais minimalista tanto à composição de planos quanto de personagens, apostando em uma economia que pouco se encontra no chamado cinema mainstream.
Por aspectos que já foram elucidados, o filme vencedor do Leão de Ouro no festival de Veneza pode ser considerado superior a Encontros e Desencontros, que é um exemplo claro de filme superestimado. A intenção de Sofia com Um Lugar Qualquer parece ser basicamente a mesma que teve ao dirigir Bill Murray e Scarlett Johansson como protagonistas outrora: lançar um olhar afetivo para corações desalentados. E esse seu longa vem depois de Maria Antonieta, cuja recepção hostil em Cannes faria qualquer diretor rever sua carreira. De alguma maneira, nota-se que ela não quis arriscar, ao preferir escrever e dirigir um filme que trata de uma temática que lhe é tão próxima. Talvez seja um pouco exagerado dizer que Cleo seja um alter ego de Sofia, mas a realizadora é um exemplo concreto de criança que aprendeu a crescer em meio à rotina de filmagens e viagens, como filha de Francis Ford Coppola que é. Ela aprendeu, ainda que à revelia, a lidar com a ausência do pai a maior parte do tempo, e essa também é a realidade de Cleo, que é muito mais compreensiva que qualquer outra garota da sua idade, diga-se de passagem.
Um Lugar Qualquer se constrói mormente de silêncios e de olhares de cumplicidade que vão se estabelecendo entre a menina e seu genitor, o que tornam a experiência de assistir ao longa-metragem um delicado exercício de observação paciente. Há muitas cenas icônicas, que merecem ser comentadas, como a que mostra a equipe de maquiagem do filme que Johnny estrela preparando o molde para sua caracterização como um idoso. Sofia gasta vários minutos mostrando o personagem ator preso naquela máscara sufocante, empregando-a como metáfora para um cotidiano de incompletude que sua carreira de intérprete lhe gera, cuja saída talvez esteja no travamento de relações afetivas mais estreitas. A sequência da tal máscara causa aflição aos nervos de quem se dá conta da necessidade que urge diante do beco aparentemente sem saída em que aquele homem se colocou.
Sofia é bastante feliz no uso da metalinguagem, um elemento que se presta a inúmeros olhares, e vem sendo analisado e utilizado com rendimentos díspares por meio da filmografia de cineastas de diferentes estirpes. Em Um lugar qualquer (título que não traduz exatamente o original, que seria algo como "algum lugar"), o olhar é encantador, e repleto de momentos ternos e sublimes. Não há muitas respostas prontas aqui, mas o apontamento para caminhos que talvez possam ser uma possibilidade de encontro consigo mesmo ou com o outro. Na cena da premiação do ator em uma cerimônia italiana, a diretora mostra com humor o deslocamento e o descolamento de Johhny Marco daquela rotina risível de compromissos, e seu olhar para a filha que está na plateia parece clamar por um socorro urgente. Ali, eles já estão na fase do entendimento algo telepático, até culminar em outras duas cenas memoráveis: o banho de sol dos personagens no hotel, que existe de fato e onde a própria Sofia já se hospedou com o pai, e o mergulho na piscina em que eles brincam de tomar chá. O filme chega ao seu final com uma nova sequência de estrada, dessa vez mostrando que a bússola do personagem talvez tenha encontrado finalmente o seu norte.
Nota: 8,5
Na minha opinião, um dos melhores filmes do ano que passou - e um dos melhores de Sofia. Não é melhor que Encontros e Desencontros, mas não fica a sua sombra, mesmo sendo tão parecido. Concordo com a nota.
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