Uma análise do ser humano é o que oferece esse filme de Fernando Meirelles, entre outras coisas menos importantes. Baseado na obra do grande escritor Jose Saramago, Ensaio Sobre a Cegueira pode ser considerado um ensaio sobre a natureza humana.
A história é simples, mas ao mesmo tempo complexa. Simples no sentido de não haver nomes, referências ou uma geografia exata. Por outro lado, é uma trama densa, até mesmo assustadora, ao mostra a regressão do ser humano quando perde algo valioso, no caso a visão.
Tudo começa em uma cidade não identificada, onde pessoas passam a ficar cegas de repente. Sem nenhuma explicação clínica, todos vão perdendo a visão, como se fosse uma epidemia devastadora. Mas ao contrário da cegueira normal, essa é uma "cegueira branca", como leite derramado. As tentativas iniciais do governo de conter a epidemia e manter a população calma não funcionam, mesmo depois de isolar todos os "infectados" dentro de um hospital desativado. Dentro desse hospital, conheceremos as vidas de diversos personagens, todos sem identificação, como no caso de um oftalmologista e sua esposa (Mark Ruffalo e Julianne Moore). Tal esposa é a única que consegue enxergar, mas se finge de cega para poder acompanhar o marido. Ela, como personagem central e de maior significado, guiará seu marido e um pequeno grupo de cegos no meio do caos.
Diante de tal epidemia, presos em um precário sanatório e sem perspectiva de melhoras, todas as pessoas voltam aos instintos de sobrevivência mais básicos: comer, beber e reproduzir. A lei do "mais forte sobrevive" vigora, e o mais importante é saciar as necessidades mais naturais. Diante de tudo isso, a esposa do médico nos guiará como olhos no filme. Por meio dela veremos tudo, assim como os personagens que ela guia no decorrer da trama. Assim podemos perceber como é ser diferente de todos, o que é ser os olhos de uma multidão que não tem a visão. Podemos aplicar ao pé da letra aqui o famoso ditado "Em terra de cego, quem tem olho é rei".
Em respeito a parte técnica, o filme está de parabéns. De muita inteligência usada por Meirelles, toda a fotografia é esbranquiçada, mostrando claramente ("claramente"?, me perdoem o trocadilho) a situação das pessoas diante da cegueira. Cidades como São Paulo e Nova York foram usadas como locação, de modo que é possível ver paisagens mais familiares para os brasileiros.
Interessante notar que em momento algum há algum tipo de explicação para a epidemia. É apenas um surto de cegueira inexplicável, que vem tão rápido quanto vai. Não há explicação para o fato da esposa do médico não se contaminar, mesmo em meio a tantos contaminados. O motivo disso é óbvio: a cegueira é uma analogia feita para analisar a fundo a alma humana, não foi criada para deixar o filme com um aspecto de ficção científica.
Há inúmeras cenas fortes, explícitas mesmo. Como por exemplo as cenas de um tipo de estupro em massa são até um pouco exageradas e assustadoras, já que também usam uma fotografia diferente do resto do filme, mais alaranjada e escura. A cena do incêndio também é capaz de horripilar, ao nos mostrar uma quantidade incontável de cegos desesperados em meio a chamas, sem saber para onde ir. Os momentos que mostram as pessoas lutando e até mesmo matando por comida num supermercado é igualmente avassaladora.
O toque especial de ter um diretor brasileiro no comando, além da participação da atriz Alice Braga num dos papéis principais, nos dá a perspectiva de esperar boas coisas do futuro por parte do cinema brasileiro. É esse toque brasileiro, adicionado à uma obra de autoria portuguesa, que dá ao filme toda a originalidade e frescor, mesmo sendo considerado um trabalho norte americano. Essa fusão de culturas retratando uma história onde não há geografia definida, com certeza pode ser considerada um dos pontos mais altos do filme, principalmente para nós brasileiros.
Nota: 8.0
Este é um dos poucos filmes que, na minha opinião, funcionam melhor para quem leu o livro - um dos meus favoritos. A fotografia branca também faz referência à cegueira branca criada por Saramago e a cena final me trás arrepios sempre.
ResponderExcluirNão é um filme fácil e nem de longe uma unanimidade, mas me dá orgulho pensar que é obra de um brazuca.
Preciso ler a obra de Saramago.
ResponderExcluirEu sou fã do livro do Saramago e acho que ele daria várias adaptações cinematográficas, mas adoro o trabalho de adaptação feito pelo Fernando Meirelles e pelos roteiristas, que souberam tirar aquilo que de melhor existe no livro do Saramago. O resultado é um belíssimo filme, que merecia ser mais apreciado do que realmente o foi.
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