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segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Amarcord (1973)



É difícil expressar em palavras a grandeza de um filme magnífico. Não um filme bom ou até mesmo ótimo, mas clássico - em todos os sentidos da palavra. Recentemente eu assisti a um desses filmes titânicos, e terminei de vê-lo com um sentimento de grandeza e vergonha. Vergonha, sim, porque eu passei anos ignorando uma faceta do cinema que poderia ter me enriquecido ainda mais tanto como um crítico quanto como um ser humano. O filme de que falo, esta poderosa obra que apequenou meu orgulho e expandiu meus horizontes, se chama “Amarcord”.

O que é “Amarcord”? “Amarcord” consegue ser tudo sem ser nada. Consegue ser um épico sem ter história; ser ambicioso sem ter objetivos; ser grande sem deixar de ser simples. Se o cinema é a janela com a qual podemos retratar tudo que desejamos, “Amarcord” é cinema puro e simples. Seu diretor, ainda por cima, é uma lenda: Federico Fellini, com esta obra que se revelaria o ápice de sua forma, levaria para Itália mais um Oscar (Melhor Filme Estrangeiro, 1975) e derreteria o coração até mesmo dos críticos mais cascas-grossas. Roger Ebert, o crítico popstar, escreveu aquela que seria a melhor descrição já feita de Fellini: “É absolutamente um cineasta de tirar o fôlego. Fellini figurou, por um grande tempo, como um dos cinco ou seis maiores diretores do mundo e, de todos eles, ele é o único verdadeiramente natural. (...) O cinema lhe parece fluir sem qualquer esforço, como a respiração, e ele pode orquestrar a mais complicada das cenas com pureza e simplicidade.

Estamos falando de um filme sem história. A trama de “Amarcord” não possui uma moral, um objetivo, nada! É uma obra semi-biográfica em que o próprio Fellini narra, com angustiante saudosismo, as emoções, as comédias, as tristezas e as bizarrices de uma vida em uma cidade costeira da Itália nos anos 30. “Amarcord” não possui sentido e não se encaixa em gênero algum: por oras envereda pela sátira, em outras passa a ser apenas um filme de costumes; em momentos se transforma em drama e, em outros, é uma genuína comédia pastelão. Este filme é uma magnífica bagunça de personagens e estilos, uma obra realista com contornos fantásticos. Se a intenção de Fellini era contaminar a platéia com a sensação de nostalgia, ele foi incrivelmente bem-sucedido.


“Amarcord” é um filme que dá ao espectador a vontade de entrar nele, de viver na cidadezinha, de interagir com seus personagens, de participar deste fantástico mundo repleto de inocência e pureza. Estranho, porque este mundo vive a época plena do fascismo e está às portas da guerra. Talvez seja uma espécie de ode de Fellini ao estilo de vida campestre, longe das agruras cosmopolitas dos grandes centros europeus; uma vida onde até mesmo um partido corrupto, autocrata e sanguinário é visto com espanto, curiosidade e, por vezes, gozação.

Se “Amarcord” tenta alguma crítica política, consegue fazê-la sem nunca deixar seu tom de fábula e inocência: as seqüências com o partido fascista são hilárias e a cena da confissão dos adolescentes na Igreja é tão incisiva quanto pura. Vemos o desabafo sincero de Titta, o personagem principal e alter-ego de Fellini, e conhecemos as fantasias sexuais - ora compreensíveis, ora doidas - dos jovens da cidade. “Você se toca?” - pergunta o padre - “Você sabe que, toda vez que você se toca, o santo chora!” E então temos as hilárias cenas na imaginação dos jovens no confessionário - a mais notável de todas, que me forçou a tomar fôlego após incontroláveis gargalhadas, é a que se passa em uma garagem (prefiro omitir os detalhes).

Sim. “Amarcord” também é uma comédia do bizarro; atrevo-me a dizer: pastelona, como só as comédias italianas conseguem ser. A vila em que se passa a trama é uma coleção de personagens estereotipados, às vezes amalucados, mas simplesmente carismáticos e bondosos. O sanfoneiro cego, o advogado intelectual, o diretor conservador, a prostituta ninfomaníaca, a dama sensual, o vendedor loroteiro, a família de Titta... impressionante é a coleção de personagens e mais formidáveis ainda são as situações em que elas se envolvem. Vivemos com tanta intensidade a vida italiana do filme que nos sentimos parte da grande família que são os personagens do filme: uma hora, a família de Titta começa uma feroz e cômica discussão na hora do almoço - no melhor estilo de “barraco italiano” - e, noutra, estão todos da cidade, em barcos, com suas loucuras e diferenças, apreciando a passagem de um poderoso transatlântico, embebidos em uma felicidade provinciana e unidos em estranha comunhão.


É neste ponto que eu volto para reforçar a mensagem: “Amarcord” não tem história. Não tem nenhum outro propósito senão o de relembrar a adolescência saudosa de uma Itália que não mais existe. “Amarcord”: “eu me recordo”, do dialeto romagnol. Um suspiro poético, personalíssimo, de autor que atingiu o panteão dos deuses com um cinema simples que abalou os alicerces do mundo. Fellini nos convida a conhecê-lo, a fazer parte de sua vida, a viver o seu passado, e isso é tão verdade que os personagens freqüentemente falam diretamente com a platéia. É uma magia que conduz o filme ao triunfo e que engrandece a platéia. Quando um dos personagens, enfim, se volta par a câmera e proclama: “A festa acabou. Até a próxima!”, e vemos a multidão alegre e familiar do filme se dispersar e a tela se dissolver em negro, nos damos conta da maravilhosa experiência que acabamos de viver.

“Amarcord” é um filme eterno, um retrato histórico, uma grande brincadeira, uma total baderna; fruto genial de uma mente não menos brilhante que mostrou ao mundo - e agora, a mim - uma maneira absolutamente peculiar de se ver e retratar a realidade. Grazie, Fellini.




NOTA: 9,0

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