É difícil expressar em palavras a
grandeza de um filme magnífico. Não um filme bom ou até mesmo ótimo, mas
clássico - em todos os sentidos da palavra. Recentemente eu assisti a um desses
filmes titânicos, e terminei de vê-lo com um sentimento de grandeza e vergonha.
Vergonha, sim, porque eu passei anos ignorando uma faceta do cinema que poderia
ter me enriquecido ainda mais tanto como um crítico quanto como um ser humano.
O filme de que falo, esta poderosa obra que apequenou meu orgulho e expandiu
meus horizontes, se chama “Amarcord”.
O que é “Amarcord”? “Amarcord”
consegue ser tudo sem ser nada. Consegue ser um épico sem ter história; ser
ambicioso sem ter objetivos; ser grande sem deixar de ser simples. Se o cinema
é a janela com a qual podemos retratar tudo que desejamos, “Amarcord” é cinema
puro e simples. Seu diretor, ainda por cima, é uma lenda: Federico Fellini, com
esta obra que se revelaria o ápice de sua forma, levaria para Itália mais um
Oscar (Melhor Filme Estrangeiro, 1975) e derreteria o coração até mesmo dos
críticos mais cascas-grossas. Roger Ebert, o crítico popstar, escreveu aquela
que seria a melhor descrição já feita de Fellini: “É absolutamente um cineasta de tirar o fôlego. Fellini figurou, por um
grande tempo, como um dos cinco ou seis maiores diretores do mundo e, de todos
eles, ele é o único verdadeiramente natural. (...) O cinema lhe parece fluir
sem qualquer esforço, como a respiração, e ele pode orquestrar a mais
complicada das cenas com pureza e simplicidade.”
Estamos falando de um filme sem
história. A trama de “Amarcord” não possui uma moral, um objetivo, nada! É uma
obra semi-biográfica em que o próprio Fellini narra, com angustiante
saudosismo, as emoções, as comédias, as tristezas e as bizarrices de uma vida
em uma cidade costeira da Itália nos anos 30. “Amarcord” não possui sentido e
não se encaixa em gênero algum: por oras envereda pela sátira, em outras passa
a ser apenas um filme de costumes; em momentos se transforma em drama e, em
outros, é uma genuína comédia pastelão. Este filme é uma magnífica bagunça de
personagens e estilos, uma obra realista com contornos fantásticos. Se a
intenção de Fellini era contaminar a platéia com a sensação de nostalgia, ele
foi incrivelmente bem-sucedido.
“Amarcord” é um filme que dá ao
espectador a vontade de entrar nele, de viver na cidadezinha, de interagir com
seus personagens, de participar deste fantástico mundo repleto de inocência e
pureza. Estranho, porque este mundo vive a época plena do fascismo e está às
portas da guerra. Talvez seja uma espécie de ode de Fellini ao estilo de vida
campestre, longe das agruras cosmopolitas dos grandes centros europeus; uma
vida onde até mesmo um partido corrupto, autocrata e sanguinário é visto com
espanto, curiosidade e, por vezes, gozação.
Se “Amarcord” tenta alguma crítica
política, consegue fazê-la sem nunca deixar seu tom de fábula e inocência: as
seqüências com o partido fascista são hilárias e a cena da confissão dos
adolescentes na Igreja é tão incisiva quanto pura. Vemos o desabafo sincero de
Titta, o personagem principal e alter-ego de Fellini, e conhecemos as fantasias
sexuais - ora compreensíveis, ora doidas - dos jovens da cidade. “Você se
toca?” - pergunta o padre - “Você sabe que, toda vez que você se toca, o santo
chora!” E então temos as hilárias cenas na imaginação dos jovens no
confessionário - a mais notável de todas, que me forçou a tomar fôlego após
incontroláveis gargalhadas, é a que se passa em uma garagem (prefiro omitir os
detalhes).
Sim. “Amarcord” também é uma comédia
do bizarro; atrevo-me a dizer: pastelona, como só as comédias italianas
conseguem ser. A vila em que se passa a trama é uma coleção de personagens
estereotipados, às vezes amalucados, mas simplesmente carismáticos e bondosos. O
sanfoneiro cego, o advogado intelectual, o diretor conservador, a prostituta
ninfomaníaca, a dama sensual, o vendedor loroteiro, a família de Titta...
impressionante é a coleção de personagens e mais formidáveis ainda são as
situações em que elas se envolvem. Vivemos com tanta intensidade a vida
italiana do filme que nos sentimos parte da grande família que são os
personagens do filme: uma hora, a família de Titta começa uma feroz e cômica
discussão na hora do almoço - no melhor estilo de “barraco italiano” - e,
noutra, estão todos da cidade, em barcos, com suas loucuras e diferenças,
apreciando a passagem de um poderoso transatlântico, embebidos em uma
felicidade provinciana e unidos em estranha comunhão.
É neste ponto que eu volto para
reforçar a mensagem: “Amarcord” não tem história. Não tem nenhum outro
propósito senão o de relembrar a adolescência saudosa de uma Itália que não
mais existe. “Amarcord”: “eu me recordo”, do dialeto romagnol. Um suspiro
poético, personalíssimo, de autor que atingiu o panteão dos deuses com um
cinema simples que abalou os alicerces do mundo. Fellini nos convida a
conhecê-lo, a fazer parte de sua vida, a viver o seu passado, e isso é tão
verdade que os personagens freqüentemente falam diretamente com a platéia. É
uma magia que conduz o filme ao triunfo e que engrandece a platéia. Quando um
dos personagens, enfim, se volta par a câmera e proclama: “A festa acabou. Até
a próxima!”, e vemos a multidão alegre e familiar do filme se dispersar e a
tela se dissolver em negro, nos damos conta da maravilhosa experiência que
acabamos de viver.
NOTA: 9,0
Es una película imposible de olvidar, un poema hecho cine.
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