Em um polêmico – e não menos realista – artigo para a revista “Vanity Fair”, o jornalista James Wolcott declara: “É
oficial: a televisão superou o cinema.”
“Os
filmes jamais morrerão (...) mas é na TV onde se encontra a ação, onde os
vícios são forjados, onde a Máquina dos Sonhos opera a todo vapor. Enquanto eu
escrevo isso, os Oscars estão a poucos dias de distância e ‘O Artista’ carrega
os louros como o mais provável vencedor. Será que alguém, sinceramente, acha ‘O Artista’ melhor que
‘Mad Men’?” (Tradução livre)
O Sr. Wolcott faz um ponto interessante:
embora ainda haja filmes que consigam cativar e viciar, eles se tornaram mais
uma exceção do que regra. Enquanto isso, no reino da televisão, as séries se
sofisticaram ao ponto de se transformar na nova “Máquina dos Sonhos”, aquele
tipo de entretenimento ao qual todos recorremos quando precisamos de uma
injeção de sonho e fantasia. Isso não acontece mais no cinema.
De um ponto de vista pessoal: acompanhar os
novos lançamentos de filmes se tornou uma atividade cada vez mais frustrante
para mim. Não fossem os clássicos, o cinema ocuparia uma porção periférica de
minha atenção. A cada lançamento, vemos que a Grande Indústria (Hollywood no
centro) já perdeu o seu tato com o público: mais explosões, mais sexo, mais
violência e menos história. Os roteiros se tornam cada vez mais clichês; os
personagens, desinteressantes; os vilões, esquecíveis. À exceção de produções
indie (que precisam se refinar sempre para não caírem no esquecimento total) e
de alguns raros Tarantinos e Miyazakis da vida, o Grande Cinema – aquele que
chega a todas as salas, cujos filmes moldam culturas e cujo público jamais se
cansa de falar – está decrépito. E o caixão já o aguarda.
Enquanto isso, duas indústrias que sempre
permaneceram à sombra das telonas – a televisão e os videogames – prosperam até
mesmo em tempos de feroz pirataria. Enquanto o cinema perde dinheiro e
criatividade, essas duas outras indústrias ainda seguram os lucros e –
principalmente – atingem patamares de criação nunca antes vistos. Séries como
“Mad Men”, “Boardwalk Empire”, “Game of Thrones” e videogames como “Dead
Space”, “Bioshock” e “Mass Effect” se tornaram nossos novos arrasa-quarteirões.
Eis uma descrição da revista “Time” que guarda, implicitamente, uma comparação
agourenta:
“Uma
obra de arte dividida em dois discos. (...) Com um combate mais polido
adicionado ao modelo RPG, ‘Mass Effect 2’ é o ‘Avatar’ dos videogames – só que
com um roteiro melhor.” (Tradução livre)
A verdade é que o cinema deixou de ser um
porto-seguro. Pelas décadas de 70, 80 ou até mesmo a de 90, nós sabíamos que,
todo ano, haveria pelo menos um filme que arrasaria os corações de uma geração
inteira. Hoje, eu dou graças aos céus caso um grande lançamento fique pelo
menos “acima da média”. 2011, em minha opinião, foi um dos anos mais estúpidos,
pobres e insalubres na história do cinema – nunca uma edição do Oscar foi tão
insossa! E o que os jogos e a TV nos ofereceram neste mesmo período?
A estréia de “Game of Thrones” marcou a
cultura popular; “Boardwalk Empire” deixa boquiabertos até mesmo os mais
fanáticos por “Os Bons Companheiros”; “The Walking Dead” provou que a TV pode abrigar
uma série de horror tão boa e crítica quanto os melhores filmes de George
Romero. E um dos assuntos mais comentados era o retorno de “Mad Men” no ano
seguinte – mais comentado até do que as produções dos mega-fenômenos “O
Cavaleiro das Trevas” e “O Hobbit”.
E os jogos? Seria necessário dizer que 2011
foi um dos anos mais épicos de da indústria – e apenas mais um de uma seqüencia
fabulosa? “Mass Effect 2”, “Dead Space 2”, “Total War: Shogun 2”, “Crysis 2” –
todos aclamados como obras-primas... e lançados apenas no primeiro trimestre! Nos
trimestres seguintes: “Portal 2”, “The Witcher 2”, “L. A. Noire”, “Deux Ex:
Human Revolution”, “Batman: Arkham City”, “Battlefield 3”, “Call of Duty:
Modern Warfare 3”, “Uncharted 3” e, é claro… SKYRIM!
Lembrando apenas que esses foram os jogos aclamados como “revolucionários”. Não
estamos falando de jogos “bons” ou “ok” – mas daqueles cujos lançamentos
redefinem a indústria. Quantos filmes fizeram o mesmo em 2011? “O Artista”? “A
Árvore da Vida”?!
Cada vez mais o cinema se torna uma arte para
pequenos círculos de discussão – apenas cinéfilos de longa data e profissionais
falam sobre ele com grande emoção. É uma arte ainda capaz de trazer qualidade,
mas sem a ambição e o gigantismo de outrora. Como resume Wolcott: “Aqueles filmes ‘de que todo mundo fala’
estão sendo falados por um menor número de pessoas.” Enquanto isso, as
melhores produções da TV e dos games conseguem aliar altíssima qualidade com
aquele irresistível gigantismo que Hollywood perdeu. Produções como “House” e
“Bioshock” são tão poderosas, criativas e reflexivas quanto um filme de P. T.
Anderson, mas tão populares quanto o mais megalomaníaco lançamento de James
Cameron.
A terrível moral é que a Grande Indústria já
não consegue aliar qualidade com quantidade: OU ela faz um clássico OU ela faz
um filme popular. Já não parece mais possível fazer os dois. Mas o que
explicaria essa alternância de valores? Como é que indústrias tão improváveis
como a TV ou os games estariam tomando um terreno que o cinema ocupou por mais
de um século?
A pirataria é um motivo menor, já que –
teoricamente – afeta a todos igualmente. Ainda assim, existem aspectos técnicos
que deixam os filmes mais vulneráveis aos downloads e cópias ilegais do que os
games e séries de TV.
- Games não são fáceis de serem baixados: são arquivos pesados que quase sempre precisam de alguma configuração especial para serem iniciados. Diferente de arquivos de vídeo, não basta clicar em um ícone e já ir rodando; a instalação de um game pirata pode esbarrar em dores de cabeça como “código serial” (que às vezes exige outro programa para ser destravado) e qualquer erro compromete o game em algum ponto. Isso sem falar nos constantes updates e pacotes de expansão, que não funcionam em games piratas;
- Séries de TV, diferente dos filmes, não dependem muito de pessoas comprando um produto físico (no caso, um ingresso). Elas estão ligadas a patrocínios e os lucros obtidos com comerciais. Ao estarem ligadas a um canal fechado, seu público não paga pela série em si, mas por todo o conjunto de produções oferecidos pelo canal. Isso é muito mais atraente para o bolso do que gastar uma certa quantia para um único produto que só vai durar por duas horas ou pouco mais.
A pirataria parece afetar o cinema de maneira
mais dramática do que essas duas mídias. No desespero para obter um lucro
fácil, os grandes estúdios apostam em histórias fáceis de engolir, cheias de
efeitos visuais e de menor duração, a fim de realizar mais exibições por sala.
O Grande Cinema se tornou quase inteiramente regido por executivos, e não por
artistas. Sai a figura do diretor, entra o marqueteiro. Ao se guiarem mais por
análises financeiras do que por uma vanguarda criativa, os estúdios acabam
construindo obras amorfas, esquecíveis e de rápido consumo. Mas isso ainda não
parece o cerne da questão.
Um argumento mais tentador é que as séries de
TV e os games se adaptaram melhor à nova geração do que os filmes. Não se trata
de uma geração de jovens estúpidos consumidores de “Crepúsculo” – essa é apenas
uma “minoria barulhenta”, mas não a nova tendência em si. Trata-se de uma
geração de pessoas ávidas por uma diversão compartimentada
e imersiva: séries de TV e games têm uma natureza mais episódica e amigável
(mais apropriadamente, no inglês: “likable”)
que os filmes.
·
- Enquanto um filme depende inteiramente de uma linha de raciocínio, as séries de TV sempre retratam diversos núcleos dramáticos e acontecimentos de forma separada e independente. Se você não gosta da história de um personagem X, você pode muito bem se concentrar na do personagem Y sem prejuízo para a história total. As séries são construídas especialmente com essa divisão; caso você perca alguma linha de raciocínio, sempre há uma pequena recapitulação no início de cada episódio – ou você pode ler uma breve nota na internet e entender tudo que se passa. Já um filme exige investimento total de sua atenção em basicamente uma única história (mesmo filmes com vários núcleos dramáticos possuem todos eles ligados a uma história central). Queira ou não, isso proporciona um universo menos rico e diversificado, além de restringir as opções do público a uma única escolha: ou ele gosta ou não gosta. Se ele não se interessar pela história central, dificilmente algo mais prenderá sua atenção.
- Os games são um caso especial: embora suas histórias sejam menos “compartimentadas” como em séries de TV, a sua vantagem é a insuperável capacidade de imersão. A reação instintiva de cada jogador é se sentir como o personagem; essa é a primeira coisa que acontece em um game, medíocre ou clássico. É por isso que grandes games viciam muito mais do que grandes filmes: nos filmes, você torce pelo personagem. Nos games, você É o personagem. E mais: quando um filme acaba, simplesmente acaba. O máximo que você pode fazer é rever os melhores momentos. Um jogo nunca acaba: que tal recomeçar em um nível mais difícil? Ou então tomar outro caminho ou escolher outro tipo de arma como sua companheira fiel? Nos RPG’s, então, as possibilidades se expandem ao infinito (mais uma vez... SKYRIM!)
O problema principal, porém, parece o fato de
que o cinema permanece controlado por verdadeiros fósseis econômicos
(Hollywood, por exemplo, é um grande trust composto por um punhado de empresas
passadas de pai para filho). Não é capaz de se adaptar. Não flui sangue novo
por suas veias! Enquanto a indústria do cinema parece virar um clã dinástico de
um punhado de diretores e produtores, a TV e os videogames acolhem as mentes
frescas e férteis que surgem na multidão.
Essa “formação de clãs” é incentivada por a uma
questão trabalhista: no cinema (pelo menos no norte-americano e no europeu), o
poder dos sindicatos se tornou supremo. Cada classe (roteirista, diretor,
ator...) possui sua própria representação, e qualquer filme, para ser
realizado, precisa encontrar uma harmonia entre esses sindicatos. O excesso de
regulamentação gera um entrave criativo; ao invés de ser uma arte colaborativa,
o cinema se tornou uma zona de combate onde cada funcionário tenta proteger o
próprio filão: roteiristas exigem um aumento generalizado dos preços de cada
script e maior participação na produção; atores exigem condições especiais para
contracenar; já diretores pedem atores submissos e roteiristas menos “enxeridos”...
para cada grupo, há um pesado sindicato pronto para defendê-los até a última
instância. Nos casos mais graves, o filme vai dos estúdios aos tribunais. Não
há mente criativa que funcione neste ambiente.
A TV e os games, entretanto, são fenômenos
mais recentes e menos regulados. Talvez mais por sorte do que por planejamento,
existe aqui a mesma harmonia entre criação e produção que existia em Hollywood
nos seus Anos Dourados: assim, fazem-se jogos e séries com grande apelo público
e com enorme qualidade. Sem falar que os custos são menores: os maiores games
hoje em dia são produzidos com uma equipe de cem, quando muito; uma produção
cinematográfica de mesmo calibre chega aos milhares de indivíduos. O mesmo vale
para cada episódio de uma série de TV. Nos games, não existem “estrelas” e os
roteiros são quase sempre colaborativos, e não fruto de apenas uma “mente
brilhante”. Ou seja, menos egos envolvidos.
Embora as séries de TV tenham suas
“estrelas”, o processo geral é colaborativo e mutável: após cada episódio, são
feitas extensas pesquisas de público; a depender da opinião geral, os próximos
episódios poderão ser reescritos para melhor corresponder às expectativas do
povo. Já percebeu aquele personagem que é introduzido em um episódio, mas que morre
ou some após um punhado de episódios? Provavelmente sua popularidade não estava
alta, então o melhor era “se livrar dele”.
Enfim, não se trata apenas de uma paranóia
pessoal. É fato que o cinema saiu da boca do povo. À exceção de um “Cavaleiro
das Trevas” aqui e ali, o Grande Cinema se tornou uma diversão casual e
secundária, e não mais um compromisso social como nas décadas de 60 ou 70.
“Você viu o episódio de ontem?” se tornou uma pergunta mais comum do que “Você
viu o filme que estreou?”. É mais fácil você reunir os amigos para jogar o
“Battlefield 3” do que para ver “Batalha Naval”. Isso deixa uma reflexão
incômoda: se as coisas estão assim, como será o futuro?
Ótima postagem. O tema é complexo.
ResponderExcluirAcredito que o cinema não vai morrer, o que ocorre é uma consequência da elitização da diversão. Mesmo sem contar a pirataria, grande parte do público que ia ao cinema está trocando pela tv, principalmente pela popularização dos canais por assinatura que dá ao espectador uma quantidade imensa de opções.
Existem pacotes na faixa dos R$ 100,00 sendo que uma ida ao cinema no shopping não sai por menos de R$ 30,00. Some ingresso, pipoca, refrigerante e transporte.
Esta situação faz com que o público que ia três vezes aos cinema por mês, hoje vá uma vez cada dois meses. Os frequentadores habituais das salas de shopping são jovens da classe média e alta que são bancados por pais com dinheiro. Este público não procura arte, mas sim diversão, mesmo que seja estúpida. Daí a grande quantidade de filmes sem conteúdo, que se apoiam em efeitos especiais, explosões e sexo.
Em SP com o custo de vida absurdo, inclusive para diversão, a tv por assinatura se tornou mais viável para grande parte da população do que ter de se deslocar ao cinema ou a outro local, onde o gasto será bem maior.
Abraço
Muito foda o texto, Diogo. Concordo plenamente, menos na parte em que você bota "A Árvore da Vida" no mesmo patamar que o legal porém raso "O Artista" ;)
ResponderExcluirBem, quem me conhece sabe que minha opiniao sobre ''A Arvore da Vida'' eh bem menos animada. Ainda assim, foi so como efeito de demonstracao, pois ''A Arvore da Vida'' e ''O Artista'' foram os filmes mais comentados e aclamados no meio critico ano passado.
ExcluirApesar de achar que os ingressos estão cada vez mais caros, o que vem elitizando o hábito de ir ao cinema, ainda não perdi e nem quero perder o entusiasmo de esperar pelo lançamento de um filme e conferi-lo numa sala escura.
ResponderExcluirEsse prazer, a televisão nunca vai poder me dar.
O que dói é jogar a série Brothers in Arms e perceber que as personagens são melhores, mais profundas e bem desenvolvidas do que o filme "Pearl Harbor", isso quando o jogo apenas deveria ser um FPS divertido.
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