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sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Orson Welles e “Soberba”



Após rever ontem á noite o clássico “Soberba”, fiquei assolado por algumas reflexões inevitavelmente sombrias sobre a vida. A maioria delas era sobre a obra deste homem que figura em virtualmente todas as enquetes de críticos como o maior diretor de todos os tempos. Fico me perguntando se toda a fama e aclamação que Welles enfrenta hoje não é apenas um golpe de sadismo do “destino” (ou seja lá como você queira chamar essa sucessão de eventos), pois poucas vezes se viu uma pessoa tão louvada na teoria e tão execrada na prática. Por isso mesmo coloquei Welles no décimo lugar de minha lista sobre os “10 Cineastas Caídos em Desgraça”*: o trato que ele recebia dos grandes estúdios era simplesmente indigno demais para alguém que não devia ter recebido na vida nada menos que louros.

Expliquemo-nos: “Soberba” era um dos dois filmes inclusos no milagroso contrato que Welles conseguira com a RKO Pictures, aquele que estipulava autoridade total ao diretor. O primeiro filme, claro, fora “Cidadão Kane” - uma obra tão exaustivamente citada como a “melhor de todos os tempos” que tal afirmação se tornou quase um pleonasmo. A semelhança entre os filmes, aliás, é notável: ambos giram em torno de um magnata com grande fama e influência onde vive (George Minafer, em “Soberba” e Charles Kane, em “Cidadão...”); ambos retratam a decadência física, espiritual e mesmo material desses dois titãs em face de um mundo que se altera drasticamente (Minafer, pela ascensão dos automóveis e da sociedade industrial; Kane, pela Grande Depressão); ambos os personagens são maníacos por controle e acabam destruindo suas relações sociais por isso. Creio que “Soberba” é até mais pessimista e sombrio que seu primo mais famoso: enquanto “Cidadão Kane” se mantém predominantemente frio, com um personagem que jamais esconde do público seus demônios pessoais, “Soberba” inicia-se quase como uma novela no melhor estilo romântico, com imagens de uma cidade bucólica e as relações quase rurais entre seus poucos habitantes, e termina como um produto que nem o mais perverso delírio realista de Machado de Assis poderia oferecer: uma sociedade engolida pelas indústrias e pela decadência das velhas ordens aristocráticas.

Bom, voltemos ao raciocínio, pois essa não é uma crítica de filme. A desgraça pessoal de Welles se iniciara logo quando “Cidadão Kane” estava em fase de distribuição. As similaridades entre o personagem Kane e o ainda vivíssimo (e poderoso) William Randolph Hearst**, magnata da mídia, eram arrasadoras, ao ponto que o filme começou a ser visto como uma paródia voraz do rico homem. Por mais que Welles negasse (“Kane é um personagem inteiramente fictício”), isso não impediu que Hearst mostrasse o pior de sua personalidade: aparentemente se esquecendo de coisas como “liberdade de expressão”, o magnata iniciou um terrorismo psicológico contra Hollywood (isso mesmo, Hollywood como um todo), não só dizendo que iria proibir qualquer menção do filme em seus jornais como também iria revelar inúmeros documentos secretos (como eles os conseguira, ninguém sabe) com os piores podres da indústria. Fosse qual fosse a intenção de Kane com seu filme, ele se vira objeto de ódio de virtualmente todas as empresas de Hollywood, exceto a RKO - que chegara a receber uma proposta em dinheiro que cobria os custos do filme em troca de todos os seus rolos. O proponente tinha a declarada intenção de queimá-los.

Como ainda acreditava no potencial do diretor - afinal, não é do nada que um estreante recebe um contrato daqueles! - a RKO comprou o blefe de Hearst e lançou o filme. Nenhum documento secreto foi divulgado, mas o terrorismo midiático de Hearst surtira efeito: embora fosse amado pela crítica, “Cidadão Kane” quase nada teve de lucro (muitos cinemas se recusaram a exibi-lo, por medo de Hearst, e os que exibiram tiveram uma platéia que pouco ou nada entendera do filme) e foi estrondosamente esnobado pelo Oscar (uma única vitória em nove indicações). Até onde mais Hearst difamou seu mais novo inimigo, ou quantas influências ele usou por detrás do pano, ninguém sabe, mas o lançamento de “Cidadão Kane” foi o início de uma das carreiras mais “tragicamente brilhantes” do cinema. E é aí que chegamos em “Soberba”.

Welles, como estabelecido em contrato, possui total controle na produção, desde o roteiro e casting até o louvado final cut (corte final, que é a versão do filme a ser apresentada no circuito comercial). Da mesma forma que em “Kane”, Welles dedicara seu corpo e espírito à produção, talvez até um pouco mais: foi em “Soberba” que ele disse ter gravado a cena mais tecnicamente avançada de todos os tempos (o baile na mansão dos Ambersons; um longo e contínuo shot que contava com a sincronia de dezenas de atores); foi em “Soberba” que Welles construíra um de seus mais favoritos desfechos. E foi justamente em “Soberba” que a RKO resolveu quebrar o próprio acordo: com medo de mais um grande fracasso, dado o tom do filme e a reputação canhestra de Welles com o grande público, os executivos da empresa, sem consentimento do diretor (que estava no Brasil, gravando “É Tudo Verdade”), mudaram o desfecho do filme para uma espécie de “final feliz” e eliminaram quase 50 minutos da versão original (144 minutos, contra os 88 que foram lançados nos cinemas), incluindo a preciosa cena do baile, que terminou apenas como resquícios em uma orgia de cortes. Por esse prisma, “Os Magníficos Ambersons” foi o filme que inaugurou a mania de intromissões dos executivos nas obras de Welles. “Eles destruíram meu filme”, comentou o diretor ao saber das mutilações. Ele diria o mesmo para muitos de seus outros filmes.

De novo: é difícil saber de alguma personalidade que tenha sofrido tanto com quase todos os piores traços na natureza humana: a hipocrisia (a campanha de Hearst contra uma obra cujo único crime, quando muito, era criticá-lo), a soberba (quase todos os executivos, após “Soberba” e o desastre comercial “É Tudo Verdade”, tratariam Welles como um sem noção que nada entendia da indústria do cinema) e a simples e pura ignorância (as reações das platéias para os filmes de Welles era o mesmo que a de porcos cuspindo sobre pérolas). Mas o que me motivou a escrever este texto foi a agonia com que assisti “Soberba”: novamente, tive que me contentar com a versão de 88 minutos. Nem sei restou algo da de 140 (se sim, por favor, me deixem saber). A questão é que, por melhor que o filme seja, toda a obra é impregnada pela sensação de que falta algo mais. E falta sim: 50 minutos! É uma agonia perceber as intenções do diretor e ver que elas só não foram plenamente realizadas por causa das intromissões do estúdio. “Soberba” possui uma história corrida, principalmente  a partir do terceiro ato, vários cortes bruscos e um final que destoa totalmente de tudo que foi mostrado (o filme caminhava para um desfecho trágico e perfeito, com George Minafer empobrecido e perdido nas ruas alienígenas de uma sociedade repentinamente industrial, mas é logo corrigido para uma espécie “redenção” onde nem os atores parecem saber o que fazer).

Welles é um shakespeariano, e não é surpreendente que a maioria de suas histórias adote o mesmo tom: a ascensão de uma grande figura seguida de sua lenta e inevitável queda, movida por seus próprios vícios ou por um destino sádico. É um tanto assustador constatar que também o artista, junto com sua arte, seguiu o mesmo desfecho.



*Aliás, tenho que fazer uma mudança na dita-cuja. Como muitos vieram me dizer, a presença de Ed Wood em oitavo lugar (na verdade, em qualquer lugar da lista) é descabida. Não importa o quão baixo ele terminou em vida, pois ele nunca havia ascendido ao ponto de se considerar, em qualquer momento posterior, um “desgraçado”. Em seu lugar, colocarei uma personalidade cuja situação atual é tão dissonante da glória de outrora que, honestamente, não sei porque não me lembrei dela meses atrás, quando fazia a lista. Aguardemos, contudo.

**Outro detalhe interessante: ambos baseiam um de seus personagens em figuras-chave da época em que foram criados. Charles Foster Kane é equivalente fílmico de William Hearst e Eugene Morgan, pai do interesse romântico de George Minafer, é a versão fictícia de Henry Ford.

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