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quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Princesa Mononoke (1997)

San, a Princesa das Feras. Uma personagem perdida entre a lealdade aos lobos e sua própria natureza.


Era uma época de deuses e demônios...

Hayao Mayazaki é um gênio. Talvez seja um dos maiores gênios vivos, não apenas no cinema, mas nas ciências humanas como um todo. É um daqueles homens inatamente extraordinários cuja existência só se repete uma vez a cada era. Não há exageros: quem analisa suas obras – quem se delicia com suas criações – logo percebe que não se trata de um ser humano comum, mas daquela categoria “eleita” pela natureza para ser inevitavelmente superior no campo em que tem talento. Miyazaki, assim como Chaplin, Kubrick, Welles ou Coppola, possui um talento tão inexplicável, tão indecifrável que inspira admiração e inveja nos demais homens. Para o público, ele é um artista em quem se pode confiar. Para outros diretores, um exemplo a ser seguido. Para os cinéfilos, um professor cujas lições são sempre valiosas. 

Numa vida de realizações sempre impecáveis, passando pela co-fundação dos Estúdios Ghibli com o fenomenal Castle in the Sky, marcando a infância de milhares de cidadãos com Meu Vizinho Totoro e sendo oscarizado no grandioso A Viagem de Chihiro, Miyazaki se afirma como um homem de realizações ora excelentes ora próximas da perfeição. Mas se há alguma obra digna da eternidade, se há algum filme digno de figurar entre os maiores filmes do cinema, se há algum feito que conseguiu a absoluta perfeição (ou até mesmo a ultrapassou), este filme é, sem dúvida, Princesa Mononoke. Soberbo em todos os seus aspectos, este épico de proporções incalculáveis trouxe o nome de Miyazaki às terras ocidentais, mesmo que somente nos círculos mais reclusos de cinéfilos e críticos. Classificado como “a renovação do cinema japonês”, esta animação suprema transcende todos os aspectos da cinematografia e eleva os padrões de “obra-prima” para patamares talvez nunca mais alcançáveis. Princesa Mononoke é mais do que o melhor filme de Miyazaki. Trata-se na maior animação de todos os tempos.


San e seus "irmãos". Os desenhos da equipe dos Estúdios Ghibli formam uma das artes mais belas do século.


Ó, grande demônio de raiva e ódio, eu me curvo perante sua grandeza. (...) Parta em paz, e não guarde rancor de nosso povo.

Japão feudal. Em uma terra dominada por espíritos das florestas e homens, o equilíbrio entre as forças se perturba em face à dominação humana. Das árvores, um demônio sai em ataque furioso a uma aldeia, mas é detido e morto pelo jovem príncipe Ashitaka. Amaldiçoado pelo espírito, o príncipe descobre-se dominado por alguma força crescente e destrutiva, e é forçado a abandonar a aldeia e descobrir o que causou o surgimento de tão enraivecido demônio. Inicia-se a sua jornada através de uma terra fantástica, dúbia, imprevisível, repleta de seres tão capazes de bondade velada quanto de bárbara maldade

“Um ‘Senhor dos Anéis’ japonês”. Foi o que me veio à cabeça quando assisti pela primeira vez esta obra de Miyazaki. O filme ultrapassa os limites de uma animação e certamente não é recomendado a crianças: lutas frenéticas se entremeiam em uma história madura e jamais cansativa, o sangue jorra de personagens abatidos com uma realidade tão grotesca e perfeita que somente é possível nos firmes traços dos desenhistas dos Estúdios Ghibli. O enredo é cuidado por um roteiro impecável, que se revela uma lição de como fazer uma obra épica. Pouco é necessário para que o espectador mergulhe no mundo bucólico e denso de Miyazaki; é possível sentir o ar das florestas, a claustrofobia de suas árvores apertadas e seus vales obscuros. A ambientação é perfeita; os desenhos, impecáveis. O 2D de Miyazaki em muito supera o CGI das animações mais recentes e badaladas. O uso da computação – “Princesa Mononoke” é a primeira obra miyazakiana a fazê-lo – serve apenas para os detalhes que, animados de outra forma, seriam pouco convincentes ou apresentariam um custo e um esforço elevados. Mayazaki reitera: “A computação gráfica destrói a magia que há na história. Somente a animação convencional pode transmitir a verdadeira alma da obra”.

Costumo dizer que os Estúdios Ghibli são os únicos a conseguir olhar nos olhos da Pixar sem vergonha ou subserviência. De vez em quando, eles podem olhar a famigerada americana com superioridade. De uns tempos para cá, meu favoritismo pela Pixar vem esmorecendo perante os Estúdios... não que uma seja necessariamente superior à outra, embora ambas as empresas sejam infinitamente superiores a todas as outras. A Pixar possui um apelo mais popular, aliado aos fundos ilimitados da patriarca decadente Walt Disney; os Estúdios Ghibli são arte pura, embora não aquele tipo irritante de arte reservado a um grupinho de filósofos pseudo-intelectuais. As filosofias das duas empresas são de culturas totalmente diferentes. Compará-las é difícil e talvez insensato. Mas nenhuma obra da Pixar jamais conseguiu se aproximar dePrincesa Mononoke, e o 2D do filme consegue fazer o que o CGI da Pixar jamais sequer sonhou ser possível.


Lady Eboshi, retrato da mulher forte e independente. Assim como San, suas ações são motivadas por apenas uma razão: proteger o seu povo.


Aqui um dia já foi uma bela vila. Agora não restou mais nada. (...) O mundo está desmoronando, Ashitaka, está desmoronando e eu não pretendo sucumbir em seus escombros...

A crítica ao filme presente no livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer define Miyazaki como “um homem que se recusa a ver os próprios filmes como meras animações”. É verdade. Princesa Mononoke é real em todos os seus aspectos; as ações dos personagens não poderiam ser mais bem feitas por nenhum dos grandes atores de Hollywood. Trata-se de um filme distante de qualquer maniqueísmo, onde todos são vilões ou mocinhos em potencial. A suposta “vilã” do filme não é pérfida nem deseja dominar o mundo, mas apenas luta para defender os seus semelhantes contra os espíritos da floresta, por ela considerados os verdadeiros “bandidos”. E vice-versa. A suposta “heroína” do filme é impulsiva, cheia de rancor, quase preconceituosa e comete atos ora de bondade, ora de maldade e ora de pura insensatez. E no meio desta salada de conflitos está Ashitaka, um meio-termo espirituoso que sofre ao se ver envolto nesta guerra dos mundos e ao ser forçado a escolher um dos lados.

O desfecho destes personagens tão enigmáticos e imprevisíveis se dá não na derrota, mas na redenção de ambos os lados. Tal como em Magnólia, a violência desencadeada pelas ações danosas dos personagens acaba por puni-los e redimi-los. Os personagens se tornam plenos, mas não perfeitos: Ashitaka se recusa a viver nas florestas pela responsabilidade de reconstruir a Cidade de Ferro; a princesa-lobo se recusa a perdoar os humanos por tudo que fizeram, mas aceita uma “coexistência pacífica”; os caçadores-de-recompensas desistem de sua luta por se reconhecerem derrotados e esquecem a contenda, embora não necessariamente se unam aos “vencedores”. Tudo se acaba sem acabar: a vida continua, com destinos diferentes para cada um. Mais lutas diárias virão, embora acalentadas com o conforto de tempos certamente mais calmos.


Ashitaka conforta San em uma das cenas mais marcantes do filme.


Você é tão... bonita...

Como eu penso que as adolescentes de hoje em dia estão perdendo suas vidas apreciando “Crepúsculo” ou coisas do gênero. O quanto do verdadeiro romantismo elas perdem todos os dias ao preferirem essas obras à Princesa Mononoke. O conceito de “romantismo” hoje em dia é de revirar o estômago e causar diabetes tamanha é a quantidade a açúcar nas cenas cada vez mais açucaradas e enjoativas. Princesa Mononoke, assim como todos os filmes de Miyazaki, traz um romance muito mais singelo, delicado, puro e totalmente verdadeiro, não fosse o teor fantástico da obra, o que leva muitos a conceberem esse romantismo como “irreal” ou “imaginário”. San e Ashitaka, os grandes “apaixonados”, não se beijam em nenhum momento da obra. Não declaram poemas ou palavras de amor um para o outro, deitados em um campo florido. Sequer se permitem carícias típicas de um casal apaixonado. Mas como o fariam? O mundo ao seu redor desmorona; o ambiente urge que sejam fortes e que lutem contra a decadência de seus povos.

Onde está o romance, então? O romance está nas pequenas delicadezas entre as partes: seja na declaração inesperada de Ashitaka para San, enquanto esta, furiosa, aponta uma espada para garganta do príncipe, seja nas partes em que Ashitaka luta para salvar a amada da morte, o amor entre ambos se mostra mais claro, mais óbvio e mais singelo. É um amor respeitoso, não uma paixão furiosa e avassaladora com a qual muitas adolescentes sonham, sem ter realmente consciência daquilo que desejam. Miyazaki cria, com soberba maestria, cenas que nas mãos de qualquer outro diretor seriam um desastre: como é que alguém consegue criar um romance na cena em que San regurgita carne na boca do debilitado Ashitaka de modo a forçá-lo a comer? Só ao escrever, a sensação é de nojo. Mas não! Miyazaki faz desta cena uma das mais lindas do filme, embora sem dúvida uma das mais estranhas: o amor traduzido no carinho, mesmo que um carinho muito pouco ortodoxo. De forma menos chocante, há a cena em que Ashitaka cobre a amada para protegê-la do frio sem ao menos lhe dar um único beijo na bochecha. Em momento algum do filme o par mantém qualquer contato físico amoroso. Em nenhum! Ainda assim, o amor revelado pro ambos é mais forte do que qualquer filme que eu já tenha visto; Miyazaki nos lembra que o amor é feito de pequenos atos.

Ashitaka... você tem forças para salvar a mulher que ama?

O final da obra, um dos mais arrebatadores desfechos do cinema, revela uma história de amor que não se encerra, mas que está apenas começando. San e Ashitaka não podem conviver no mesmo grupo; suas culturas são por demais diferentes. Eles não se rendem aos desejos loucos (e irreais) de abandonar tudo o que têm para viverem “felizes para sempre”. Eles são um casal como qualquer outro, sem heroísmos, rodeados apenas pela vida e seus afazeres. “Vou visitá-la sempre que possível”, lembra Ashitaka, simbolizando um namoro calmo e infinitamente profundo. Essa é, afinal, a profundidade das emoções em Princesa Mononoke, algo que jamais houve em nenhuma outra animação no mundo.


Ashitaka e San. O amor como ele realmente é.


- Ouviram isso?
- O quê, minha senhora?
- É ela... ela está aqui...

Talvez toda a grandeza de Miyazaki jamais fosse possível sem a contribuição de outro homem igualmente genial: Joe Hisaishi, um dos maiores compositores a cujas músicas tive o prazer de escutar. Ele e Miyazaki formam a dupla “Spielberg-Williams” do Japão; são inseparáveis, quase dois artistas em mutualismo criativo. Assim como Miyazaki se eleva à perfeição na direção de sua obra, Hisaishi se eleva à perfeição na composição de suas músicas: a trilha sonora de Princesa Mononoke é uma das peças musicais mais belas que eu já escutei. Suas músicas vão ao fundo do coração de quem as ouve, como uma flechada que toca nos nossos sentimentos, causando uma sensação prazerosa e ainda assim amarga, plácida, quase que nostálgica. Há alguma coisa mágica na música de Hisaishi, cuja profundidade se iguala ou supera a trilha sonora de O Senhor dos Anés: até hoje tento ouvir a seqüência Journey to the West sem chorar (pronto, confessei); perdi a conta de quantas vezes escutei a música The Legend of Ashitaka ou a maravilhosa Ashitaka and San. Todas as cenas de Miyazaki ganham uma nova dimensão ao som da trilha de Hisaishi, o qual ultrapassa os fins meramente cinematográficos e cria uma música tão digna das melhores composições de Viena.

Eu desisto... não se pode ganhar de tolos!

Princesa Mononoke é um dos maiores filmes da história do cinema. Quebra todas as barreiras existentes nos conceitos da arte cinematográfica. Um filme que intimida, tão grande é a sua arte, tão perfeita é a sua execução. Miyazaki parece ser não um daqueles “gênios normais”, mas algum “escolhido” pela evolução para guiar o cinema a novos patamares. Sua obra é cercada de um mistério intrigante: não parece uma obra concebida por uma mente humana. Princesa Mononoke talvez seja uma obra de alma e concepção divinas.

- De qualquer forma, isso não muda nada. Mesmo que a floresta cresça de novo, jamais será como antes. O Espírito da Floresta está morto...
- Não, San, o Espírito da Floresta não pode morrer: ele é a Vida! E neste instante ele está nos ensinando algo valioso: está na hora de aprendermos a viver.


NOTA: 10



***Selo OBRA-PRIMA*** 
O autor deste comentário considera este filme uma
verdadeira obra-prima.


Um comentário:

  1. Belo texto....
    Princesa Mononoke é Lindo, um caos, uma experiencia tão forte e que poucas vezes experimentei....
    um dos maiores filmes da história do cinema [2]
    O poder da imaginação nesse filme é algo indescritivel....

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