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quinta-feira, 3 de março de 2011

Manhattan (1979)

A simplicidade com que Woody Allen conduz Manhattan (idem, 1979) é um dos grandes atrativos do filme, mas não o único. Aqui, leveza e fluidez se conjugam numa história que atravessa o dia-a-dia de um homem comum, que enxerga a vida de uma forma um tanto pitoresca. Elementos quase sintomáticos de sua filmografia, que, a cada novo item, torna-se mais preciosa. O longa veio apenas dois anos depois do primeiro grande êxito do diretor com o público e a crítica, Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977), que levou várias indicações ao Oscar. Entre esse último e Manhattan, Allen ainda rodou Interiores (Interiors, 1978), onde buscou lançar mão de sua paixão por Bergman, numa trama soturna.

Para rodar Manhattan, o cineasta recrutou novamente Diane Keaton, parceira dos dois filmes anteriores, com quem ele foi casado na vida real. É ela quem dá vida a mulher que perturba o sossego de Isaac Davis, vivido pelo próprio Allen. Acostumado a levar uma vida um tanto banal, ele é sacudido pela presença luminosa de Mary Wilkie (Keaton), que vem a ser a namorada de seu grande amigo. A saia justa está formada, mas ela não é a única questão importante a ser retratada no filme. Isaac tem vários outros focos na vida, alguns bem mais preocupantes. O maior dele talvez seja saber que a ex-mulher se revelou lésbica, e pretende, através de um livro biográfico, expor a intimidade dos dois para quem quiser ler. A ex é interpretada com propriedade por Meryl Streep, que nunca faz um trabalho menos do que ótimo. Isaac também detesta a namorada que tem, de apenas 17 anos, e não sabe como terminar o relacionameto com a garota. Seu emprego também não é dos melhores, o que o leva a encarar a vida com certa amargura.


Manhattan aperfeiçoa o que Allen já vinha procurando fazer desde seus primeiros filmes: entender o que estamos fazendo aqui e questionar a humanidade de diversas maneiras. O ano ainda era 1979, mas até hoje ele segue, de certa forma, batendo nas mesmas teclas, ainda que busque diferentes mecanismos para levantar essas questões recorrentes. Sua principal alternância é entre o drama e a comédia. O caso de Manhattan é o segundo. Ele também aproveita para fazer mais uma vez uma homenagem à cidade que tanto ama, a bela Nova York, colocando-a como muito mais do que um pano de fundo. A cidade é também uma personagem do filme, uma espécie de coadjuvante de luxo para uma trama que arranca risadas graças à habilidade de Allen como contador de histórias. Mesmo em meio a situações que poderiam soar como dramáticas no longa, ele dá um jeito de lê-las sob o prisma do cômico.

Um punhado de referências eruditas aparecem ao longo do enredo, e o espectador não precisa se sentir na obrigação de entender e acompanhar todas elas. O jazz, estilo musical do qual o diretor é amante, está ali também, permeando cada passo dado por seu Isaac, mesmo aqueles em falso. O personagem já não é mais um garoto, passou por fases de muitas dúvidas, mas ainda tem grandes incertezas sobre bastante coisa na vida. É inevitável perceber que, como outras obras allenianas, essa tem um quê autobiográfico. Recentemente, em uma entrevista, o diretor disse que, agora que está mais velho, notou que acumulou muitas vivências e experiências, mas pouca sabedoria. É uma questão com a qual Issac se vê confrontado em Manhattan, já há três décadas.


Aqui o cineasta também abre mão das cores, como voltaria a fazer em Memórias (Stardust Memories, 1980), Zelig (idem, 1983), Celebridades (Celebrity, 1998) e outros. A ausência de uma paleta colorida indica um exercício de estilo nos dias de hoje, mas parece que já era o que diretor se propunha a fazer desde então. Para olhares pouco habituados, pode ser incômodo, ainda mais em dias tão tecnológicos, em que filmes como Avatar (idem, 2009) explodem um diversas tonalidades. Mas, com o passar de alguns minutos, essa característica passa a ser mero detalhe, e a concentração fica toda na história. O roteiro do filme, aliás, é perfeitamente elaborado, com vários momentos cruciais em que pequenas fatias de humor corrosivo são colocadas com perícia. Afinal, trata-se de um mestre do humor, arma que serve para desarmar com elegância, se bem utilizada, pode funcionar muito melhor que o drama, assim como ocorre em Manhattan. Trata-se de um filme que exalta as pequenas coisas, que eleva a instâncias superiores, como o simples ato de conversar em uma mesa de bar. Ali, qualquer assunto pode ganhar uma dimensão enorme, e ser a questão de vida ou morte dos interlocutores. Bebericar qualquer coisa, elogiar a beleza da mulher que passa pela outra calçada, reclamar do governo, gabar-se por uma nova conquista, amorosa ou não... enfim, amenidades que não fazem mal a ninguém.

O discurso de Allen abarca uma série de tópicos, e assistir a eles em forma de filme é saborear um delicioso prato preferido, feito pelas mãos mais hábeis que há. Manhattan prova que viver é passar por um dia de cada vez, com a consciência de que nenhum é igual a outro, porque nós mesmos mudamos dia após dia, sem nem mesmo notarmos. E a velha tese de que o extraordinário é o fato de estar vivo ganha reforço, já que nem só de grandes acontecimentos é feita a vida. Uma certa dosagem de acaso, misturada a uma pitada de obstinação, também podem contribuir significamente para dar novos rumos ao curso do rio que é a vida.

Nota: 9,0


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