O Sonho de Cassandra, objeto de análise dessa crítica, lança mão de um argumento pesado para ser debatido sob o verniz dramático: a culpa diante de uma atitude que não pode ser revertida. Nesse filme, o mal, uma vez cometido, jamais pode voltar ao bem que fora antes. Como protagonistas, foram escalados Ewan McGregor e Colin Farrell, que personificam, respectivamente, Ian e Terry, dois irmãos de comportamentos e perspectivas opostas que, apesar disso, são amigos e cúmplices incondicionais. Cada um deles vive um problema que está lhe tirando o sono. Ian é um espécime de aspirante a milionário que vive da ostentação daquilo que não tem de verdade. Terry é viciado em jogo, o que o faz desperdiçar seus rendimentos do trabalho em horas de diversão arriscada.
A conjuntura em que os irmãos se encontrem é decisiva para que uma atitude drástica seja tomada por eles. Por conta das dificuldades financeiras, eles recebem uma oferta tão interessante quanto temível de seu tio Howard (Tom Wilkinson): assassinar um desafeto seu que está decidido a denunciar as suas falcatruas. Em troca do crime, terão uma grande quantia de dinheiro, que solucionará as suas pendências monetárias. À proposta do tio, surgem reações distintas nos dois irmãos: enquanto Ian compra a ideia quase automaticamente, interessado no que vai receber se cumprir a “tarefa” que lhe está sendo confiada, Terry fica extremamente receoso, preferindo pensar mil vezes antes de dizer “sim” a Howard. Para convencer os sobrinhos, Howard lança mão de um argumento que, para ele, é inquestionável: os laços de sangue que os unem. O tio sempre os ajudou financeiramente, e agora é a hora de retribuir realizando uma “missão especial”.
Não por acaso, o slogan com o qual o filme foi vendido quando esteve em cartaz nos cinemas diz “Família é família, sangue é sangue”. Aliás, O Sonho de Cassandra foi apresentado aos espectadores com um daqueles longas-metragens de ação prototípicos, com tiros e mortes a cada minuto. É um erro grosseiros que pode vitimar os mais incautos. Allen não está preocupado em revelar uma faceta sanguinolenta com o filme. Por mais que, dessa vez, sua câmera espie as neuroses humanas sob uma perspectiva mais densa, seus conflitos tradicionalmente abordados continuam ali, ainda que em estado de latência. Diante da oferta do tio, o dilema dos irmãos passa a ser mais importante do que a concretização do crime em questão. Por isso, quem assiste ao filme com a expectativa de testemunhar uma morte daquelas bem aterrorizantes certamente ficará desapontado.
Um dado importante do filme, além dos que já foram comentados, é a sua fotografia deslumbrante da cidade de Londres. O céu nublado típico daquele lugar é sublinhado por uma ambientação intimista, criando um clima opressor adequado à narrativa. Nesse sentido, o filme se assemelha a outra produção alleniana: Crimes e Pecados (Crimes and Misdemeanors, 1989). Como no filme da década de 80, o cenário em que transitam os personagens é lúgubre e, ao mesmo tempo, instigante. O responsável pelo tratamento precioso da imagem é Vilmos Zsigmond, diretor de fotografia húngaro que já havia trabalhado pouco tempo antes com Allen, em Melinda e Melinda (Melinda and Melinda, 2004), e é um veterano naquilo que faz. É possível citar uma série de longas nos quais ele assinou seu nome, e entre eles estão Amargo Pesadelo (Deliverance, 1972), Louca Escapada (The Sugarland Express, 1974), O Franco Atirador (The Deer Hunter, 1978), A Fogueira das Vaidades (The Bonfire of the Vanities, 1990), Corações Apaixonados (Playing by Heart, 1998) e Menina dos Olhos (Jersey Girl, 2004). Esses são exemplares de uma carreira longa e profícua que, por mais díspares que sejam, têm em comum o seu nome nos créditos.
Allen também acertou na escalação de elenco mais uma vez. Como de hábito, em O Sonho de Cassandra seus intérpretes oferecem desempenhos memoráveis, dignos de nota. Allen demonstra novamente uma direção de atores irrepreensível, extraindo performances hipnóticos de McGregor e Farrell. Os dois, aliás, são nomes um tanto improváveis para constar do elenco de um filme do diretor, mas conseguem penetrar no universo do novaiorquino septuagenário com brilhantismo. O roteiro bem escrito assinala o tempo todo as diferenças de personalidade entre os irmãos. Ambos se complementam por aquilo que têm de distinto do outro. Enquanto Ian é altivo em seu desejo de riqueza e poder, Terry é um tanto canhestro nas suas escolhas, refletindo o medo e o desespero ao tentar lidar com os rumos que sua vida vai tomando. Há muito tempo Colin Farrell não aparecia tão espetacular em um papel, funcionando como o contraponto perfeito para seu companheiro de cena.
Aos mais arredios a descobrir qualquer coisa a respeito de um filme antes de assistir a ele, uma recomendação: NÃO LEIAM ESSE PARÁGRAFO! O tal assassinato do qual Ian e Terry são encarregados, de fato acontece. Mas de uma forma bastante desengonçada, como cabe a um filme de Allen. Quando os irmãos finalmente conseguem a ocasião perfeita para cometer o crime, mal sabem como abordar a vítima, um colega de trabalho da empresa de Howard. Eles são reconhecidos pelo homem como sendo sobrinhos de quem são, e ficam extremamente desconcertados com a memória daquele que vão matar. É quando, sem mais nem menos, atiram. E a cena do assassinato acontece fora de quadro, decepcionando mais uma vez que decidiu ver o filme à espera de cenas de ação eletrizantes. Também aqui Allen frustra as expectativas desse tipo de plateia, deixando no ar apenas o som dos tiros disparados por Ian e Terry. Quando a consumação do ato criminoso dos irmãos ocorre, o que se vê na tela é somente um pequeno arbusto, encobrindo os personagens e as suas reações. Daí para a frente, seguem-se as tentativas deles de suplantar a consciência pesada pelo que fizeram.
A bem da verdade, as reações dos irmãos àquilo que fizeram são distintas, como suas personalidades. Enquanto Ian consegue levar a vida na mais absoluta serenidade, sem se importar com qualquer possibilidade de ser descoberto, Terry passa a conviver com um grave desconforto com sua nova condição, que o atormenta e lhe impede de prosseguir. O ato cometido é absolutamente devastador para sua consciência, e ele tenta convencer Ian de que serão pegos a qualquer momento. É a essa altura que fica claro que O Sonho de Cassandra é, antes de tudo, um filme que trata da culpa. Como certa vez afirmou um crítico, o impedimento moral é uma das questões centrais da obra do diretor, exatamente como aparece retratado aqui. Nada surge com uma solução imediata, e a hesitação dos irmãos diante da oferta do tio comprova que, nem sempre, podemos fazer nossas escolhas fundamentados em um impulso. A lei da ação e reação, inicialmente um princípio regente dos fenômenos da física, alarga-se aqui para demonstrar que tudo que fazemos apresentará sua devida repercussão.
Quando foi lançado, o filme logo recebeu comentários que davam conta de compará-lo a Crimes e Pecados e a Ponto Final, no que tange ao assunto central da abordagem do diretor. De fato, O Sonho de Cassandra guarda semelhanças com as obras supracitadas, o que levou alguns críticos a dizer que o filme é a terceira parte de uma “trilogia Crime e Castigo”. Diferentemente dos outros dois, porém, o filme de 2007 apresenta, de fato, um castigo para o crime em questão. Ao decidir dirigir uma obra que versa sobre as ressonâncias de um ato definitivo, Allen poderia ter escolhido a opção redentora ou a punitiva, e acabou preferindo a segunda. Daí a subclassificação do filme como parte dessa “trilogia”. Outras semelhanças entre os três filmes podem ser apontadas, como a atmosfera de desalento que toma conta das rotinas dos personagens, e os envolve de tal forma que eles são compungidos a atos um tanto extremado, cada um deles à sua maneira. Judah (Martin Landau) cogita o assassinato de sua amante em Crimes e Pecados, assim como o faz Chris (Jonathan Rhys-Meyers), em Ponto Final, e Ian e Terry são igualmente levados a cometer um ato de consequências irreversíveis.
Como se pode perceber, O Sonho de Cassandra é a revisita de temas que atravessam a obra de Woody Allen há tempos, como o existencialismo - sintetizado na concepção de que a vida é tudo o que temos, e é preciso viver com o que está por aí - , a relação conturbada do ser humano com a morte, que parece tirar o sentido de se construir qualquer coisa, as referências eruditas e o já comentado impedimento moral, que aparece em um ângulo intimista por aqui, diferentemente do que o diretor faria em seu filme seguinte, Vicky Cristina Barcelona (idem, 2008), em que a comicidade no tratamento do mesmo tema resultou em uma lufada de inovação em sua longa seara pelos caminhos da cinematografia. Um dado curioso a respeito do título é sua intertextualidade com o mito grego de Cassandra. Ela era uma figura condenada a ter sonhos premonitórios para os quais ninguém dava crédito algum. Pela segunda vez, Allen intitula um filme seu com o nome de uma personagem mitológica – o anterior havia sido Poderosa Afrodite (Mighty Aphrodite, 1995) – e, neste filme a expressão é o nome do barco em que os irmãos velejam em alguma sequências do filme, inclusive na final, que ajuda a compor o quadro de um desfecho antológico.
Nota: 9,0
Este é um filme de Woody Allen que ainda não conferi.
ResponderExcluirAbraço