A personalidade humana é o foco de Woody Allen em Zelig (idem, 1983), longa dirigido pelo novaiorquino em 1983. Até hoje, é uma de suas produções mais celebradas, e méritos não lhe faltam para isso. Envolvente como poucos de seu tempo, o filme é um interesante painel das inseguranças do homem diante da sociedade, e de como ele pode levar ao extremo seu desejo de se adequar a um grupo ou contexto social. E, para personificar esse ser em busca de pertencimento, não há ninguém mais emblemático do que o próprio Allen em sua porção ator. Ciente disso, ele assume a função de interpretar Leonard Zelig.
O filme foi concebido na forma de um pseudocumentário, partindo do princípio de que a figura do protagonista existe de verdade. Allen voltaria a usar essa recurso 16 anos mais tarde, ao recrutar Sean Penn para estrelar Poucas e Boas (Sweet and Lowdown, 1999). No caso de Zelig, fica uma sensação maior de ineditismo no espectador. Mas qual seria a grande atração na vida desse homem, que o faz digno de um filme só seu? A resposta é tão simples quanto insólita: ele é um camaleão, no sentido mais estrito da palavra. Em cada situação na qual se encontra, ele adquire a forma exata das pessoas que os rodeiam. Essa literariedade de sua transformação ganha contornos bizarros em vários momentos do filme. Quando está reunido com judeus, Zelig ganha barba espessa e cachos nos cabelos. Se se encontra com negros, logo adquire sua cor também. Se está em meio a físicos muito inteligentes, também lhes absorve as características mais marcantes. No fundo, trata-se de um movimento deseperado de enquadramento por uma forte necessidade de adequação.
O caso tão curioso acaba despertando o interesse da doutora Eudora Fletcher (Mia Farrow, numa de suas várias colaborações com o diretor), que decide estudá-lo a fim de identificar sua disfunção. Eles logo se aproximam demais, a ponto de se apaixonarem um pelo outro. Dá-se início, a partir daí, a uma história de amor longe do convencional, que cativa pelo que tem de absurda. Para comentar os eventos que se desenrolam na vida do protagonista, há um narrador, que deixa tudo mais divertido com seu senso de humor sagaz, reforçado pelo texto sempre bem escrito de Allen. A maneira como ele alinhava sua discussão sobre a questão da personalidade, já na década de 80, é magistral. Zelig é um filme inovador tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Pela temática que elegeu para abordar, o cineasta pode ser considerado um visionário. Ainda nos dias de hoje a despersonalização está presente. Na verdade, em níveis ainda maiores que os de duas décadas atrás.
Mais uma vez, Allen abre mão das cores, como já fizera nos anteriores Manhattan (idem, 1979) e Memórias (Stardust memories, 1980), o que traduz um recorte do real para levar o público a um redimensionamento de sua percepção do mundo. A estratégia adotada por ele também tem um efeito estilístico, já que sublinha a importância da história, e não tanto dos cenários em que ela está ambientada. As atuações preciosas de Mia Farrow, de Allen e dos vários coadjuvantes ganha muita força com isso. Porque esse é também um filme de atores, cada qual perfeito em sua caracterização para seu respectivo papel. De propósito ou não, ele traz uma reflexão interessantíssima sobre a coerção social sobre todos que são diferentes. Leonard Zelig não suporta a ideia de ser descartado por sua aparência destoante, o que o leva a se mimetizar em qualquer espaço aonde vá. E o aspecto de documentário impresso à contação da trajetória desse homem é intensificado pelos depoimentos que supostos amigos próximos dele dão ao longo da projeção. Está engendrado o divertido e inteligente jogo cênico de Woody Allen, que brinca de embaralhar a verdade como é conhecida e dar a ela um novo signifcado, a fim de explicitar suas convicções sobre o assunto da personalidade do homem.
Ao longo da narrativa, Allen vai na contramão de vários clichês, preferindo nem sempre agradar ao seu espectador na condução do enredo. É claro que muitas das gags visuais a que seus seguidores estão acostumados não deixam de se fazer presentes, e nem é preciso se ter muito trabalho para identificá-las. Verborrágico como sempre, o diretor mostra que o ser humano pode se adaptar a qualquer circunstância, de forma a não ser notado quando deseja. Mas até que ponto vale o sacrifício de renunciar à própria essência por uma ânsia de pertencimento. Por que tem de ser visto com tanta negatividade quem busca romper o status quo? A opinião alheia, que rege totalmente a vida de Zelig, não deveria ter tanto poder sobre ele. E essa consideração vale para qualquer um que põe o que os outros esperam na frente de qualquer atitude que pense em tomar. O filme está longe de ser didático, e de passar uma mensagem edificante a respeito da natureza humana, o que não seria mal. Contudo, essa não é uma das funções primárias do cinema. Aliás, o cinema não tem função alguma, a não ser aquela que atribuimos a ele, ao sabor de nossas vontades e intenções.
Nota: 8,5
É um dos bons trabalhos de Allen que é menos lembrado. É um filme diferente, como um personagem que é uma espécie de camaleão humano.
ResponderExcluirAbraço
Woody Allen é gênio. Recomendo o livro "Conversas com Woody Allen" pra saber sobr eo processo criativo dele. Já lesse, Patrick?
ResponderExcluirabs
Tá ai um filme do Allen que me chamou a atenção. Bem criativo e diferente. Mas ainda assim com o mesmo humor típico de Woody Allen. E como vc falou o filme tem uma mensagem muito boa sobre o comportamento humano
ResponderExcluirAbraço!