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segunda-feira, 9 de maio de 2011

Kubrick, Ética & Laranja Mecânica



Mais estranho do que uma laranja mecânica”. Foi esta curiosa expressão inglesa que inspirou Anthony Burgess a intitular sua obra como “Laranja Mecânica”. Heterodoxo, provocativo e ousadamente anárquico, o livro de Burgess atingiu certa notoriedade na época de seu lançamento, mas foi somente com sua adaptação para o cinema que a obra se tornou um fenômeno global e imortal. Clássico soberbo da sétima arte, “Laranja Mecânica” entranhou-se na cultura popular ocidental, seja pela sua filmagem ousada ou por sua iconografia inconfundível e inimitável, e serviu de influência para uma gama gigantesca de cineastas posteriores. Diferentemente, contudo, da maioria dos grandes trabalhos cinematográficos, este filme se firma como uma espécie de “patinho feio”, não encontrando paralelos em nenhuma outra obra até então: em uma palavra, trata-se de um filme único. Sua abordagem filosófica cruel, a profundidade de sua análise social, o retrato esmagador da psique humana e de sua conseqüente corrupção, além do humor negro, quase sádico, fazem desta obra uma das mais perturbadoras, e ainda assim esplêndidas, a alcançarem as grandes telas do cinema.

            Por trás deste filme icônico está a mão de ferro de uma das maiores lendas da sétima arte, Stanley Kubrick. Aclamado como um dos mais revolucionários, impactantes e influentes cineastas de todos os tempos, Stanley Kubrick encontrou no livro de Burgess o material perfeito para seu gênio criativo. “Laranja Mecânica” é Kubrick, e Kubrick é “Laranja Mecânica”: poucos filmes carregam tanto o traço artístico de seu criador de modo a se tornarem uma espécie de assinatura viva.

            Este pequeno artigo se dedica à árdua tarefa de analisar sua crítica social e filosofia. É uma tarefa, deve-se adiantar, impossível de ser satisfatoriamente cumprida, pois “Laranja Mecânica” permanece até hoje um filme indecifrável. Não poucos críticos e pensadores tentaram compreender o real significado desta obra. Ainda mais díspares são as interpretações dela advindas: seria um filme neutro, rigidamente realista, ou seria uma obra pessimista, niilista e amoral? Que representa a figura de Alex De Large, seu mítico anti-herói? Seriam suas ações depravadas um alerta sobre a desumanização das sociedades modernas ou, em uma visão mais aterradora, a representação da verdadeira natureza humana? “Laranja Mecânica” é um filme de muitas perguntas e muitas hipóteses, mas de nenhuma resposta concreta. O próprio Kubrick talvez o tenha idealizado desta maneira, inexplicável, para que as gerações atrás de gerações jamais parassem de se questionar sobre seu real significado.

Uma mente singular: a vida e a visão de Stanley Kubrick



            O entendimento de “Laranja Mecânica” depende também da compreensão de seu cineasta. Genial e enigmático, Stanley Kubrick, nascido em Nova Iorque no ano de 1928, modelou o cinema através de uma carreira de mais de quatro décadas, iniciada com o documentário experimental “O Dia da Luta” e encerrada com o filme “De Olhos Bem Fechados” – Kubrick faleceu graças a um ataque cardíaco apenas quatro dias após a conclusão deste último. Trata-se de um cineasta que criou, roteirizou e produziu filmes até o fim da vida, imprimindo na cinematografia global uma marca indelével e de destacada personalidade.

            Antes de se interessar pelas imagens em movimento, Kubrick aperfeiçoou-se desde a infância na arte da fotografia, conseguindo, aos dezoito anos, um emprego como fotógrafo da revista Look. A carreira de cineasta veio quase que por acaso, quando amigos lhe sugeriram fazer um pequeno documentário para um programa de filmes amadores. Kubrick interessou-se pela idéia e produziu “O Dia da Luta”, um curto documentário satírico sobre as lutas de boxe. A experiência animou Kubrick a adotar o cinema como carreira, abandonando seu emprego na Look para dedicar-se exclusivamente aos filmes. Seguiram-se, então, pequenos curtas e produções de longa-metragem, todos com baixo orçamento, como “The Killing” e “Fear and Desire”, nenhuma das quais obteve grande sucesso de crítica ou público. Os trabalhos, contudo, lhe valeram conhecimento do ramo artístico e contatos que lhe possibilitaram seu primeiro grande sucesso: “Glória feita de Sangue”, de 1957. A partir de então, o cinema conheceu novos e imortais clássicos através das mãos de Kubrick, que dividiam as opiniões e angariavam admiradores e detratores por todo o mundo: “Spartacus”, um épico sobre o famoso escravo romano; “Lolita”, uma erótica adaptação do livro homônimo; “Dr. Fantástico”, um representante absoluto do humor negro; “2001: Uma Odisséia no Espaço”, talvez uma das maiores ficções científicas já concebidas pela mente humana e etc.



            Kubrick jamais se rendeu a qualquer convencionalismo e não receava em quebrar padrões consagrados da época para a produção de suas obras singulares e quase sempre mal-compreendidas. Na mesma proporção que angariava fãs, cresciam também seus desafetos, entre os quais a influente crítica Pauline Kael. Mórbido, pessimista, misantropo, perturbado, recluso, todos esses eram adjetivos comuns nas descrições de sua personalidade, fossem elas de opositores ou de admiradores. Perfeccionista extremado e inveterado, Kubrick revolucionou a maneira de construir filmes: sempre um apaixonado pela fotografia, ele valorizava as grandes paisagens e mantinha certa repulsa pela câmera trêmula, valendo-se dela apenas em cenas intimistas de alguns poucos filmes, como no seu póstumo “De Olhos Bem Fechados”. Seu zelo pelas imagens era tamanho que ele não hesitava em repetir inúmeras vezes uma mesma cena até que ela ficasse perfeita; o steady-cam, mecanismo que reduzia as trepidações da câmera, era uma ferramenta obrigatória em seus filmes, atingindo a perfeição técnica nas espetaculares cenas de “O Iluminado”.

            O que mais instiga em seus filmes, contudo, é o trato sombrio das histórias. Sobressai em suas produções o retrato da natureza perversa do ser humano; seus roteiros, carregados de uma ironia mordaz, quase sempre caminham para um desfecho pessimista, desesperançado, quando não trágico. É o que se vê, por exemplo, em “Dr. Fantástico”, quando o mundo é destruído atomicamente ao som de “We’ll Meet Again”, ou em “Nascido para Matar”, quando os soldados norte-americanos marcham na calada da noite entoando a canção “A Marcha do Mickey Mouse”. Nada disso se altera em “Laranja Mecânica”; pelo contrário, todas as características que influíram para o renome de Kubrick aqui encontram seu clímax artístico. Desde os créditos iniciais até o arrepiante desfecho, “Laranja Mecânica” sustenta um estilo tão forte que o torna, talvez, o mais “kubrickiano” dos filmes.

Homens psicopatas para uma sociedade depravada



            Londres, em um futuro próximo. A sociedade padece em uma realidade distópica, esmagada pela criminalidade sem precedentes e pelo governo corrupto e autoritário. Alex de Large, em meio a esta realidade torpe, é somente mais um produto de uma civilização decadente. Sociopata e maníaco por música clássica, o jovem De Large lidera uma gangue de delinqüentes e encontra prazer nas mais variadas formas de violência e nas composições de Beethoven. Suas ações, batizadas por ele mesmo de “ultra-violência”, escapam relativamente ilesas aos olhos das autoridades até que, traído pela gangue após cometer um “acidental” assassinato, é capturado e mandado para a prisão. Lá, é escolhido para um revolucionário experimento de supressão de agressividade, que promete torná-lo um cidadão modelar.

            “Laranja Mecânica” é um filme bizarro desde os seus míticos créditos iniciais, quando os nomes dos produtores aparecem sobre telas de cores berrantes ao som da fantástica trilha sonora de Wendy Carlos. Segue-se, então, um close no rosto frio e assustador de Alex De Large, vivido pelo ator Malcolm McDowell, e a narração do próprio De Large sobre os seus planos criminosos para a noite. O ambiente, um bar psicodélico, revela a tônica de todo o filme: Alex e seus comparsas – os “droogs”, como são chamados no linguajar próprio do filme – vestem-se de forma obscena. Os móveis e os decorativos do lugar são no formato de mulheres nuas; a bebida – extraída diretamente dos seios destas “mulheres” – consiste em uma mistura de leite e drogas. Seguranças gigantescos, vestidos com malhas brancas e justíssimas, mantém a ordem e todos estão perfeitamente à vontade com este ambiente que, mesmo para os padrões de nossos tempos, é considerado perturbador.



            Essa é a essência de “Laranja Mecânica”: um mundo subvertido pelas características mais baixas do ser humano, mascarado apenas por traços tênues de civilidade. É de se pensar, inicialmente, que este mundo consiste em uma maioria de pessoas “boas” oprimidas por uma minoria “má”. No decorrer, contudo, da projeção de mais de duas horas, Kubrick destrói os valores humanos ao mostrar que todos, sem exceção, são capazes de imoralidade, violência e perversão. “Laranja Mecânica” é uma obra desconstrucionista e desconfortável; força-nos a reavaliar a natureza da humanidade e a considerar, perturbadoramente, que talvez os homens não sejam nada além de animais travestidos com falsa civilidade.

Ato I: a impressão maniqueísta de “Laranja Mecânica”



            A obra possui duas partes nítidas (Alex De Large antes e depois do tratamento psiquiátrico) separadas por uma faixa de transição (o próprio tratamento). A semelhança com uma peça teatral, dividida em três atos distintos, é notável. A primeira parte do filme joga ao espectador a crueza desta sociedade futurística: após a chocante cena inicial, segue-se uma seqüência interminável de estupros, espancamentos, mutilações, depredações e todos os sortilégios que se puder imaginar. Não há qualquer tentativa de amenizar ou de criticar semelhantes perversões; pelo contrário, Kubrick faz delas uma ironia ao expô-las sempre ao som de música clássica, notadamente a de Beethoven – compositor pelo qual Alex é obcecado.

            Predomina, ao menos aparentemente, uma visão maniqueísta da sociedade: Alex e seus droogs são apenas uma faceta perversa a tiranizar os bons cidadãos. Estes, por medo ou fraqueza, se rendem inocentes às vilanias do mundo que os cerca e não passam de vítimas aos olhos do espectador. São eles o velho mendigo espancado na rua e, de forma mais pérfida, o abastado casal que é violentado em sua própria casa de maneira sádica: Alex canta “I’m Singing in the Rain” enquanto estupra uma mulher em frente ao marido.

            Estranhamente, apesar de sentir pena e revolta pelos destinos das vítimas, não cresce no espectador uma raiva proporcional contra os autores dos delitos. Talvez por que arda ainda a esperança de justiça, talvez pela condução sensacional da obra, onde Kubrick cria uma empatia única com seu anti-herói. Charmoso, apesar de tudo, Alex De Large é um cativante psicopata que não encontra dificuldades em levar, por exemplo, duas garotas há pouco desconhecidas para a cama, valendo-se de táticas de sedução objetivas e sujas. É de conhecimento que Kubrick possui uma fascinação pela sexualidade bestial do homem: seja em “Barry Lyndon”, com seu personagem-título galanteador e imoral, ou em “Nascido para Matar”, onde os soldados americanos convivem com prostitutas e as tratam, sem qualquer vestígio de vergonha, como objetos tão valiosos quanto um cadáver estendido no chão. Para Kubrick, ou pelos menos é o que suas obras deixam a entender, o amor é somente um conceito idílico que serve de máscara para a verdadeira natureza sexual do homem. Isso se mostra especialmente claro no último e arrebatador diálogo entre Tom Cruise e Nicole Kidman em “De Olhos bem Fechados”:

“Kidman – Eu amo você e você sabe que precisamos fazer uma coisa que já deveríamos estar fazendo há muito tempo.
Cruise – O quê?
Kidman – Foder.”



            Mas isto ainda não se mostra claro nesta primeira parte de “Laranja Mecânica”. Por pior que sejam as ações vistas na tela, sempre se crê que elas são próprias apenas de pessoas depravadas como De Large. Sua prisão e o início de seu tratamento psiquiátrico, todavia, dão início a uma dolorosa reviravolta.

Ato II: a supressão da maldade em prol de uma ordem simulada



            O tratamento psiquiátrico do qual Alex é cobaia promete simplesmente a “conversão” dos indivíduos violentos em exemplares cidadãos. Concebida como uma forma de reintegrar os presos à sociedade e desinchar o sistema penitenciário desta caótica Inglaterra futurista, o sucesso do processo é crucial para as autoridades políticas de situação, temerosas de perder seu poder em face ao caos.

            A experiência, contudo, não passa de uma brutal supressão dos instintos violentos de De Large. Tudo se transcorre através de sessões de lavagem cerebral, onde o organismo do paciente – e não o paciente em si – “aprende” a repudiar todo e qualquer comportamento violento. Como um dos efeitos colaterais, De Large passa a também odiar a Nona Sinfonia de Beethoven, que foi usada como trilha de fundo em um de seus vários e dolorosos processos de “conversão”.



            A apresentação dos resultados se garante como mais uma das lendárias cenas do filme. Montada como uma apresentação teatral e conduzida ao som de “Overture to the Sun”, tendo como platéia respeitáveis autoridades religiosas e políticas, a demonstração da “nova personalidade” de Alex não passa de um embuste. Repetitivamente tentado a se mostrar violento ou promíscuo (o que inclui ser espancado por um ator e ser apresentado a uma mulher com os seios desnudos), Alex simplesmente não consegue sê-lo: seu organismo, em face de um estímulo “imoral”, está agora condicionado a sentir imensa dor, que só será arrefecida quando o paciente desistir do ato. “Violência é uma doença, e seu corpo aprenderá a tratá-la como tal.”, nas palavras de uma das enfermeiras de De Large. Nada exemplifica melhor a controvérsia do tratamento do que o diálogo travado entre um padre e o Ministro.

O padre, indignado esbraveja:

Escolha! O garoto não tem capacidade de escolha, tem? O medo da dor física é o que o leva a este grotesco ato de auto-controle. Sua insinceridade não poderia ser mais visível! Ele deixa de ser um homem capaz de maldade, mas também deixa de ser um homem capaz de escolha moral!

Ao que o Ministro simplesmente responde:

Padre, isso são meros detalhes. Nós não estamos nos importando com éticas maiores. Estamos querendo apenas reduzir a criminalidade, desafogar nossas prisões. Ele será o seu verdadeiro cristão, pronto para oferecer a outra face, pronto para ser crucificado ao invés de crucificar. Ele sentirá dor ao mero pensamento de machucar uma mosca. Se houver problemas, que preste contas com Deus! O que importa é que [o tratamento] funciona!”

Aí está o grande conflito em “Laranja Mecânica”: qual seria a natureza do bem? Em Alex, a bondade não é uma escolha; ele não encontra prazer na bondade, mas está fadado a ela. Essa dualidade é expressa muito bem no diálogo que ele tem com o mesmo padre, pouco antes de se submeter ao tratamento:

“Padre – O Governador tem graves dúvidas sobre esta terapia e eu ouvi que há perigos muito sérios envolvidos.
Alex – Eu não me importo com os perigos, padre. Eu só quero ser bom. Eu quero que todo o resto da minha vida se torne um único e grande ato de bondade.
Padre – A questão não é se não é se a técnica deixa um homem bom ou não. Bondade deve vir de dentro. Bondade é uma escolha. Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser um homem.
Alex – Eu não entendo nada dos “porquês” ou dos “comos”, padre. Eu só sei que quero ser bom.
Padre – Tenha paciência, filho. Deixe o assunto nas mãos de Deus.”

A genialidade destes diálogos não só propõe uma crítica reflexão sobre a bondade humana como expõe uma característica mórbida do tratamento: Alex não somente é forçado à bondade como é impedido de qualquer ato supostamente violento, mesmo que por legítima defesa. É esta contradição que impulsiona o espantoso final de “Laranja Mecânica”.

Ato III – uma sociedade sem mocinhos



            A reintrodução de Alex na sociedade não poderia ser mais dramática: ele logo descobre que sua família, após sua prisão, acolheu um outro rapaz como “filho adotivo” e não pode mais aceitá-lo depois de tudo o que ele fez. Largado no mundo, inicia-se seu martírio.

            Alex, agora “curado”, se reencontra com todas as suas outrora vítimas, e a situação se inverte: ele, antes o algoz, se torna vítima da vingança. Espancado e violentado por todos que ele tinha humilhado, incapaz de se defender graças ao tratamento, Alex acaba na mesma residência onde cometeu o infame estupro enquanto cantava “I’m Singing in the Rain”. A mulher cometeu suicídio e seu marido ficou inválido após as agressões do grupo de De Large. Alex é repentinamente acolhido no lugar, onde ele conta todo o processo pelo qual passou. Ele se considera perdoado, mas não pode imaginar as torturas que seriam executadas sobre ele naquele recinto, levando-o a uma tentativa malfadada de suicídio.



            Todo o maniqueísmo que parecia resplandecer no primeiro ato se esvai nesta última parte do filme. As pessoas fracas e indefesas das quais o espectador tinha pena agora se revelam tão monstruosas quanto Alex o fora. Indignação é um sentimento preponderante neste sinistro ato final de “Laranja Mecânica”: Kubrick, com paciência e metodismo característicos de sua cinematografia perfeccionista, desnuda a sociedade e constrange o espectador, ao qual a crítica do filme se estende. Afinal, se todos os homens estão propensos à mesma vilania, à mesma psicopatia que antes dominava o personagem de McDowell, o que impede que o espectador também esteja? Tal incômodo, que pode escapar às pessoas mais desatentas à obra, é o clímax da moral “kubrickiana”: a bondade, como valor absoluto, é retirada do pedestal e substituída pelo relativismo realista.

            Persiste neste final, entretanto, tal gama de críticas e análises sociais que não há possibilidade de serem expressas em tão curto artigo. O realismo do filme tende ao pessimismo, por exemplo, quando interesses políticos voltam a afetar o destino de De Large nos minutos finais da projeção. Personificadas na figura do Ministro, a corrupção e a mesquinharia dos governos modernos são retratadas como os grandes vilões responsáveis não somente pela tragédia de De Large, mas pela decadência organizacional de toda a civilização. Kubrick jamais viu os governos poderosos com bons olhos, e percebeu que a obra de Burgess seria uma oportunidade perfeita para criticar os métodos de “correção de criminalidade” de sua época. Desta forma, mais uma vez citando a resposta do Ministro ao padre, a “transformação” de Alex não visa nenhum fim moral; é apenas uma tentativa pueril de redução de criminalidade. De Large, ou seja, o indivíduo não é a preocupação do governo, mas somente um objeto, um recurso, uma cobaia para o cumprimento de seus planos. A desumanização da política é berrante nos últimos diálogos do filme.



            E é nestes últimos momentos de “Laranja Mecânica” que surgem as reviravoltas mais inquietantes que o cinema já viu. Kubrick instaura enigmas intencionalmente sem resposta, como se fosse desde o início sua intenção desnortear o público. É de se questionar se o próprio Kubrick tinha respostas para as cenas chocantes que são expostas nos últimos minutos e se há algum sentido no fim de todo este inferno psicodélico. Mas nada é gratuito para Kubrick, um diretor descrente na humanidade e em moralidades baratas: o sentido de “Laranja Mecânica” talvez seja a busca pelas respostas, e não as respostas em si. A interpretação do filme se torna responsabilidade de cada um: haverá versões mais plausíveis e outras mais absurdas; todas, não obstante, com um fundo de verdade.

Conclusão: uma obra amoral



            Ao subirem os créditos finais, haverá aqueles que pensarão terem participado de uma piada de mau gosto. Não se deve esperar uma moral em “Laranja Mecânica”, tanto porque não há. Semelhante obra não nasceu para agradar, mas para divergir, e não surpreende que, na época de seu lançamento, ela tenha angariado tanto críticas de louvor quanto de protesto.

          “Laranja Mecânica” é obsceno, provocante, inigualável. Uma obra desavergonhadamente suja que se orgulha da própria amoralidade; sua história ultrapassa as barreiras do realismo frio, assumindo feições niilistas com pontadas esporádicas de sarcasmo. Kubrick sagra-se como gênio definitivo da sétima arte nesta que é uma de suas melhores produções e um dos filmes mais revolucionários de todos os tempos.

5 comentários:

  1. Fez uma grande análise desta obra de Kubrick que, por sinal, é minha favorita.

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  2. Muito bem!! Pra mim o filme mais de vanguarda de todos os tempos.

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  3. A sua análise foi a melhor que li até agora sobre laranja mecânica. Adoro esse filme.

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  4. Parabéns pela análise! Poucas pessoas ousam se aventurar em uma análise de cunho filosófico, menos ainda se a referência for um filme tão instigante como Laranja Mecânica...

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