A simples menção da ficha técnica de Cada um com seu cinema (Chacun son cinéma, 2007) não deixa qualquer dúvida: os nomes envolvidos nessa procução são um enlevo para olhos e corações de todos os cinéfilos, em maior ou menor grau. Trata-se de uma ideia ambiciosa. Por meio de trinta e três curtas, de três minutos e meio cada, trinta e quatro cineastas puseram a mão na massa para homenagear a sétima arte. Com isso, formaram um engenhoso jogo metalinguístico em que seu próprio ofício é objeto de admiração. Participaram dessa empreitada nomes os mais heterogêneos possíveis, cujo resultado pode ser eficientemente definido pela palavra "mosaico", que, apesar de um tanto clichê, serve bem para classificar o conjunto da obra.
O ponto de partida para a compilação dos curtas foi a chegada do 60º aniversário do festival de Cannes, uma das plataformas europeias mais importantes para a cinematografia mundial. A "encomenda", por assim dizer, foi feita pelo diretor do festival, Gilles Jacob, que reuniu um time de realizadores legendários, cuja missão era falar de sua relação pessoal com a sétima arte, sem, necessariamente, abrir mão de seu estilo. Tendo essa premissa, eles rodaram suas pequenas histórias, que, de pequenas, têm somente a duração, pois cada um, à sua maneira, conseguiu dosar suas características como diretor para servir a um bom argumento. No final das contas, Cada um com seu cinema tem de tudo, um pouco.
Um dos vários aspectos interessantes do filme está logo em seu título original, um tanto comprido, mas que é uma boa síntese do espírito que norteia cada um de seus segmentos. Em bom francês, o título é: Ce petit coup au coeur quand la lumière s'éteint et que le film commence, cuja tradução para o nosso idioma é impregnada de poesia: esse pequeno golpe no coração quando a luz se apaga e o filme começa. Tal frase só poderia ser concebida por quem se deixa tocar pela magia que essa arte universal gera. E o time de diretores, já tão propalado, é um desfile de astros e estrelas que não deixa mentir sobre as qualidades do longa. Seria enfadonho mencionar todos eles, mas vale a pena enumerar ao menos alguns: Gus Van Sant, Theo Angeloupoulos, Jane Campion, Aki Kaurismäki, Lars Von Trier, Chen Kaige, Youssef Chahine, Ken Loach, Walter Salles, Nanni Moretti, David Cronemberg, Ethan e Joel Coen, Takeshi Kitano, Claude Lelouch, David Lynch e tantos outros que consumiriam várias linhas dessa crítica.
Da mesma forma que cansaria citar todos que dirigem os curtas, também não é conveniente. Ainda assim, cabe comentar alguns dos talentos que vão surgindo a cada filmete: Josh Brolin, Jeanne Moreau, Michel Piccoli, Sara Forestier, entre tantos outros nomes heterogêneos. "Cada um come seu cinema" também é uma bela oportunidade para ver alguns diretores em cena, dando expedientes como diretores. É o caso de Lars Von Trier, responsável por um dos segmentos de mais humor negro: Occupations. Na história, Von Trier faz um espectador que está no cinema tentando assistir a um filme que lhe interessa, mas não consegue aproveitar a sessão por causa de um homem que o incomoda com uma série de comentários desagradáveis. A solução encontrada por Von Trier é assassinar o homem inconveniente, de um modo nada sutil, ao que se segue uma indefectível expressão de alívio e contentamento.
Outras histórias vão sendo alinhavadas umas após as outras, trazendo diferentes aspectos dessa arte que seduz e arrebata, também sendo protagonizadas por cineastas. Em "Diario di uno spettatore", Nanni Moretti exercita seu estilo prolixo com as desventuras de um amante do cinema em suas andanças por várias salas de exibição em que foi ver filmes. Nos três minutos de que dispõe para seu curta, Moretti fala sem parar, podendo ser considerado uma versão italiana de Woody Allen, outro diretor famoso por sua verborragia. Aliás, a ausência de Allen é muito sentida, e não é justificável sob nenhum aspedto, já que sua extensa filmografia é um passaporte claro para sua inclusão no rol de realizadores selecionados para compor o painel solicitado por Gilles Jacob. Seja como for, o espetáculo composto pelos trinta e três pequenos filmes é de tirar o fôlego (aqui vai mais um clichê...).
Um diretor brasileiro também está entre os nomes de "Cada um com seu cinema". É Walter Salles, que presta uma merecida homenagem ao cinema francês com seu segmento, especificamente aquele praticado na década de 60, por uma trupe de cineastas originários do corpo de críticos da revista Cahiers de cinéma, tal como François Truffaut, a quem a honra é ainda mais notória, quando os personagens do filme observam o letreiro de um cinema em que está sendo exibido Les 400 coups. Para quem não sabe, trata-se do título original de Os incompreendidos (1959), obra inaugural de Truffaut, até hoje uma das mais celebradas de sua prolífica carreira. Em pleno interior do Nordeste, testemunhamos a chegada de um filme tão idílico para o deleite dos cinéfilos locais. É uma justa e oportuna menção.
Uma grande vantagem que se tem assistindo à coletânea de curtas é que o espectador tem a chance de entrar em contato com a obra de mais de uma dezena de diretores, que imprimem seu modo particular de filmar às mini películas que deslumbram o público. Pode-se partir daqui para ir em busca de longas precedentes ou posteriores dirigidos pelos realizadores. Fica clara mais uma função interessante do filme: a de cartão de visitas. Sem qualquer objeção à continuidade do longa como um todo, Cada um com seu cinema apresenta irregularidades. Mas, aqui, ela é uma qualidade, por mais paradoxal que isso possa parecer. No passeio pelas várias visões de cinema, tem-se poesia, como no segmento de Gus Van Sant, em que o cinema é retratado como um portal para os sonhos mais inacrediráveis, ironia, como no delírio surpreendente de Jane Campion, iconoclastia velada, como no trecho que cabe a Manoel de Oliveira, dentre várias outras caracaterísticas. Amarrando-se tudo, observa-se uma súmula do modo de fazer cinema de vários continentes e de vários países. Uma obra inclassificável em menos de uma frase, Cada um com seu cinema é, entre muitas outras coisas, um genuíno poema de amor coletivo à sétima arte.
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