Meu primeiro
(e, até pouco tempo, único) contato com Lars von Trier foi com sua suposta
obra-prima “Dogville”. Odiei tanto a obra que passei a odiar seu criador.
De fato, o trauma infligido em mim por aquela peça teatral filmada foi tão
profundo que decidi riscar o diretor para sempre de minhas listas de filmes,
não me importando o quão gracejadas pela crítica elas fossem. Mas o tempo
passou e o trauma se diluiu. Talvez tenha sido a minha afeição natural pelo
tema de “Melancolia” que eu tenha me disposto a vê-lo. Ou talvez tenha
sido o barraco aprontado em Cannes pelo diretor que me chamou atenção à sua
obra. Tanto faz. Observando agora esta maravilhosa peça de cinema, indigno-me
ainda mais perante a espantosa decisão do festival em laurear “A
Árvore da Vida” como seu melhor filme. Prefiro não mais falar deste
filme, entretanto, senão eu é que serei declarado persona non grata.
O que dizer de
“Melancolia”, um filme que me dominou desde a sua etérea seqüência inicial? Não
é um filme para os corações fracos. Sem dúvida, esta é a sua melhor definição.
“Melancolia” é tão belo quanto é cruel, e presenciá-lo é uma experiência tão
gratificante quanto desesperadora. É, no fundo, o clamor de um artista que
conseguiu enxergar a verdadeira essência da humanidade: o nada. “A terra é má”, como diz sua
protagonista, “e ninguém sentirá sua
falta”. O que mais esperar de um filme cujo único momento de genuína
felicidade decorre da aniquilação de toda a vida?
A alma de
“Melancolia” é a de sua personagem Justine, interpretada com notável vigor por
Kirsten Dunst. Imersa em um círculo
social aparentemente comum (na verdade, totalmente
comum), Justine revela-se uma náufraga em meio a um oceano de realidade,
incapaz de se conformar com a vida em função de sua severa depressão.
Inicialmente vista como “doente”, a personagem é revelada aos poucos como a única
genuinamente sã e honesta em meio a uma vida pretensamente bondosa, mas
puramente egoísta. Seu marido, um homem calmo e inocente, não parece amá-la por
nada além do que sua beleza. Sua mãe, uma desequilibrada perfeccionista, não vê
as filhos como nada além de projeções de sua própria imagem e, portanto, de
suas ambições. Seu chefe é um manipulador megalomaníaco. Seu colega de
trabalho, a início tão inofensivo, mostra-se mais um grande canalha. Seu pai,
uma figura dotada de incrível simpatia durante boa parte do filme, revela-se um
egoísta tão tremendo que não hesita em abandonar a filha no seu momento de
maior desespero. Em fim, a lista é grande. Não que essas pessoas sejam más ou
desequilibradas (ok, à exceção da mãe). Elas são normais: as pessoas que vemos
dia-a-dia, as pessoas com as quais convivemos, que namoramos, que temos como
íntimas amigas.
A visão de
Trier é simples e mortal: a virtude é uma exceção, e aqueles que a possuem são
logo marginalizados. Foi assim com Justine. A ordem do mundo, do frio mundo
submetido ás leis pétreas da seleção das espécies, é a ordem do egoísmo
mascarado pela rotina, do contrato social, da troca-de-favores. Por isso,
“Melancolia” é tudo menos agradável. Não é uma denúncia, não é um alerta, não
possui qualquer esperança de mudança ou intenção de fazê-la. É um retrato da
sociedade, e que a única forma de reformá-la seria destruí-la. Se você se
sentiu bem com o filme, você simplesmente não o entendeu.
A figura da
irmã, Claire, revela talvez uma pessoa fraca, que conseguiu isolar-se das
agruras da realidade no castelo de seu marido e, dessa forma, proteger-se da
marginalização sofrida pela irmã. Não é uma pessoa má, é uma pessoa patética.
Seu vício à vida, sua recusa paranóica em aceitar a morte inevitável mostram
apenas a sua escravização à realidade-brinquedo por ela construída, uma
realidade que é repentinamente esfacelada pela perspectiva da morte.
“Melancolia” é profundamente simbólico; nenhum detalhe contido está ali por
acaso. Há milhares de coisas que ainda preciso descobrir, fazendo deste um dos
pouquíssimos filmes que tenho vontade (de fato, necessidade) de ver novamente. É impressionante a representação do
mundo-falsete criado por Claire: a casa de campo da família. Em nenhum momento
seus personagens conseguem abandoná-lo, seja por um cavalo que se recusa a
atravessar a fronteira ou um carrinho de golfe que também falha no mesmo lugar.
A prisão de Claire e sua família neste espaço frio, porém revoltantemente
honesto, faz com que espaço seja sua desgraça, mas também sua salvação.
Temos aqui uma
moral que prega não encararmos a morte com esperança ou com medo, mas
simplesmente com aceitação do fim de um mundo naturalmente cruel e injusto.
Esta morte atéia, sem qualquer perspectiva de uma vida no além, é uma espécie
de libertação piedosa, onde não existir é a melhor alternativa.
Temos também
um filme com o mais profundo grau de imersão possível. A câmera propositalmente
amadora de Trier circula pelo ambiente como se fosse uma gravação qualquer,
daquelas que acabam em álbuns de recordações do seu computador. Isso é a
expressão máxima do chamado Dogma 95, criado por Trier e no qual o cinema deve
ser a experiência mais natural possível. Neste filme, ela funcionou com
absoluta perfeição: o filme é de tal forma gravado que seu espectador toma uma
parte ativa na trama; parece que estamos dentro da tela, vivenciando a história
ao lado de seus personagens. “Melancolia” me proporcionou uma das melhores
experiências de “quebra da quarta parede” (breaking
the fourth wall): quando o fim da Terra era iminente, meu coração disparou,
achando que também eu morreria. Quando os créditos sobem, permaneci um grande
tempo mudo e imóvel, olhando para a tela negra, até me dar conta de que ainda
estava vivo. Infelizmente.
“Melancolia” é
o melhor filme do ano. Dificilmente será ultrapassado por algum outro nos
próximos meses. É uma obra de beleza crua e amoral, sem propósito além de
lembrar-nos de nossa natureza injusta. Isso não é uma “corrupção” de nossa
“natureza-original”, como dizem muitos. É a nossa própria natureza, tal como
foi desde o início dos tempos e tal como será até o fim destes. Se você é
sinceramente puro, honesto, capaz de amar incondicionalmente, então você está
sozinho. Você é uma Justine, um renegado, um elo excepcional de um sistema que
jamais demonstrará qualquer piedade. A morte, infelizmente, é a única saída. E
a morte, felizmente, é inevitável.
NOTA: 9,0
Preciso conferir.
ResponderExcluirAbraço
Assisti ao filme hoje. Acho que "Melancolia" encontra sua força da alternância de pontos de vista entre Justine e Claire. As duas encaram suas emoções de formas muito diferentes. Com o fim do mundo, esse contato com os sentimentos fica mais exarcebado. Um belo filme, com uso poderoso da trilha sonora e imagens poéticas. Fora que a atuação da Charlotte
ResponderExcluirEu gosto da obra de Von Trier que pode ser traumática, mas ele adora polemisar tanta besteira, e a última no Festival de Cannes foi tão desnecessária que desencanei da pessoa, mas o diretor que propõe filmes como ele - no Dogma ou não - eu gosto! Este filme é até mais sombrio que Anticristo.
ResponderExcluirUm sincero texto!
Abraço.
Rodrigo
Filme sensacional. Daqueles que te prende na cadeira até depois que a projeção acaba. Um dos melhores do ano até agora.
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