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sábado, 17 de setembro de 2011

Sessão Especial de Justiça (1975)



Alguns dos mais famosos “testes” teóricos sobre a moralidade humana envolviam o “Dilema da Locomotiva Desgovernada”, hoje tão imensamente difundido que pode ser visto tanto em tratados de psicologia quanto em posts no Facebook. Para os ainda não familiarizados, suponhamos uma locomotiva desgovernada em um trilho que, pouco adiante, se divide em dois caminhos. Um deles leva a cinqüenta pessoas enquanto o outro leva a dez. Na bifurcação está o espectador do desastre iminente, que possui controle da chave com o poder de desviar a locomotiva para um dos caminhos. Qual seria decisão mais sensata? Deixar o destino seguir seu curso, podendo matar tanto cinqüenta pessoas como dez, ou escolher o caminho que leva a menos mortes? Mais difícil ainda: suponhamos a mesma situação, só que desta vez com dez cientistas brilhantes e executivos inovadores de um lado e cinqüenta criminosos do outro. Desta vez, você sabe que o trem se dirige aos cientistas e executivos. Você alteraria seu curso, matando mais seres humanos “menos brilhantes”, ou continuaria favorecendo a lógica numérica?

É inevitável o surgimento do mesmo dilema após alguns minutos de “Seção Especial de Justiça”, cujo roteiro é traduzível em uma versão um pouco mais elaborada: em um dos trilhos temos cinqüenta cidadãos inocentes e aleatórios, variando de figuras eminentes a simples cidadãos modelares. Do outro, seis condenados com quase a mesma bagagem ética, carregando apenas uns insignificantes delitos nas costas. Ao invés da locomotiva, temos a lei, que corre para esmagar os cinqüenta civis. Ao invés do espectador solitário, temos a Seção Especial de Justiça francesa, que pode desvirtuar a lei e condenar à morte os seis indivíduos para poupar os outros cinqüenta.


Tudo isso, é claro, se deve às pressões do ambiente: o local é a França de Pétain, sob o jugo nazista. Após um incidente levando a morte de um oficial alemão, ao governo francês é dado um ultimato: ou executa “formalmente” seis pessoas ou os alemães executarão cinqüenta cidadãos aleatoriamente. O filme, tão grandioso pelas suas qualidades artísticas quanto pela sua profundidade jurídica, não apenas levanta uma denúncia; ele suscita inúmeros dilemas, para os quais nossa moralidade frágil nem mesmo consegue chegar achar uma resposta definitiva.

A denúncia aqui funciona como um dedo na ferida. Usando uma linguagem ainda mais pomposa: funciona como um método freudiano desnudando nossos conceitos rotineiros e desenterrando de nosso subconsciente as cruas verdades que, para o bem da civilidade, preferimos ignorar. A mais crua destas verdades é que a Lei é meramente uma invenção humana, um aprimoramento do “código de honra” que figura nos mais básicos seres vivos dotados de sociabilidade. Preferimos, quase sempre sem nos darmos contas, cobrir este fato com enfeites e misticismos, fazendo da Lei um produto além da humanidade: ou ela é um produto da ordem universal ou, ainda mais, uma fonte divina, cujos alicerces são inalteráveis.


Tudo isto, por mais fincado que esteja em nossas culturas, soa embuste durante a situação emergencial da França Nazista. Perante a urgência dos fatos, esquecem-se os endeusamentos e parte-se para a praticidade: a Lei volta a ser refém das maquinações políticas, uma mera massa barrenta a ser moldada por um círculo de velhos e falíveis burocratas. A Lei justa corrompe-se à injustiça, mas, após algumas validações formais, a própria injustiça se torna “justiça”, bastando para isso apenas o rótulo de “medida de exceção”.

Ver a Justiça ser esfacelada com tanta facilidade é tão trágico quanto cômico, e “Seção Especial de Justiça” ergue-se como um dos melhores exemplares já produzidos sobre cinema jurídico. De apelo universal, a idéia de “desnudar” os poderosos e pomposos Senhores da Lei é magnificamente orquestrada em uma trama rica, apoiada em uma direção poderosa e uma arte tão realista que flerta com o nonsense. Tão obrigatório para os juristas quanto “Doze Homens e uma Sentença”, este filme é mais valioso que uma seção inteira de livros jurídicos. Isso sem mencionar suas espantosas qualidades cinematográficas, que o tornam um filme-modelo sobre excelência no cinema.

Esta obra é uma aula sobre o cinema europeu-continental. Em contraste com as extravagâncias e a expansividade de seu irmão americano, o cinema europeu prefere a simplicidade em todas as formas, seja no construir da história à hora de divulgar o projeto. São dois cinemas muito diferentes: os americanos têm com a câmera uma relação empregatícia; os europeus as tratam com intimidade. O cinema americano é grandiloqüente e ambicioso, enquanto o cinema europeu é humilde e delicado. Aquele falha por romantizar excessivamente a realidade, enquanto este parece sofrer de uma constante crise imaginativa. Aceitar cada um destes cinemas é comprar suas propostas e apreciá-los pelo que eles são. “Seção Especial de Justiça” é um perfeito exemplar do cinema comedido da Europa continental, uma magnífica aula de como retratar a vida com fidelidade e ainda assim contar uma história, fictícia ou não.


Os diálogos, se necessário apontar um único ponto forte neste filme, são um primor. Transitam entre denúncia (“Com esta lei, poderemos condenar qualquer um por qualquer crime!”) e a ironia (“- Ó, Deus, que caso escolhemos para julgar? / - Escolha qualquer um. Não faz diferença nenhuma, mesmo...”). São poderosos, dinâmicos, bem construídos, embora eu não possa dizer “sem exceções”. Estranhamente, o filme assume alguns momentos irrealisticamente didáticos, com os personagens descrevendo as situações históricas da trama mesmo sem ter nenhum motivo para fazê-lo além do de julgar a platéia incapaz de entender o que se passa.  São momentos tão inúteis que a mais básica revisão de roteiro os eliminaria. Em se tratando de um roteiro tão excelente, é muito estranha a presença destes estranhos trechos.

Nada que dilua o poder artístico e jurídico desta pequena jóia européia. “Seção Especial de Justiça” jamais cansa, apesar de se sustentar basicamente em diálogos; vale-se de grandes sacadas de edição, uma história geniosa, personagens bem trabalhados e um retrato assustadoramente real da ocupação nazista na França.  Sua pequena divulgação fora das fronteiras européias pode escusar o seu desconhecimento por parte dos cinéfilos. Sem essa desculpa, porém, não tê-lo assistido é nada menos que imperdoável.

NOTA: 8,0

Um comentário:

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