Alguns dos
mais famosos “testes” teóricos sobre a moralidade humana envolviam o “Dilema da
Locomotiva Desgovernada”, hoje tão imensamente difundido que pode ser visto tanto
em tratados de psicologia quanto em posts
no Facebook. Para os ainda não familiarizados, suponhamos uma locomotiva
desgovernada em um trilho que, pouco adiante, se divide em dois caminhos. Um
deles leva a cinqüenta pessoas enquanto o outro leva a dez. Na bifurcação está
o espectador do desastre iminente, que possui controle da chave com o poder de
desviar a locomotiva para um dos caminhos. Qual seria decisão mais sensata?
Deixar o destino seguir seu curso, podendo matar tanto cinqüenta pessoas como
dez, ou escolher o caminho que leva a menos mortes? Mais difícil ainda:
suponhamos a mesma situação, só que desta vez com dez cientistas brilhantes e
executivos inovadores de um lado e cinqüenta criminosos do outro. Desta vez,
você sabe que o trem se dirige aos cientistas e executivos. Você alteraria seu
curso, matando mais seres humanos “menos brilhantes”, ou continuaria
favorecendo a lógica numérica?
É inevitável o
surgimento do mesmo dilema após alguns minutos de “Seção Especial de Justiça”,
cujo roteiro é traduzível em uma versão um pouco mais elaborada: em um dos
trilhos temos cinqüenta cidadãos inocentes e aleatórios, variando de figuras
eminentes a simples cidadãos modelares. Do outro, seis condenados com quase a
mesma bagagem ética, carregando apenas uns insignificantes delitos nas costas. Ao
invés da locomotiva, temos a lei, que corre para esmagar os cinqüenta civis. Ao
invés do espectador solitário, temos a Seção Especial de Justiça francesa, que
pode desvirtuar a lei e condenar à morte os seis indivíduos para poupar os
outros cinqüenta.
Tudo isso, é
claro, se deve às pressões do ambiente: o local é a França de Pétain, sob o
jugo nazista. Após um incidente levando a morte de um oficial alemão, ao
governo francês é dado um ultimato: ou executa “formalmente” seis pessoas ou os
alemães executarão cinqüenta cidadãos aleatoriamente. O filme, tão grandioso
pelas suas qualidades artísticas quanto pela sua profundidade jurídica, não
apenas levanta uma denúncia; ele suscita inúmeros dilemas, para os quais nossa
moralidade frágil nem mesmo consegue chegar achar uma resposta definitiva.
A denúncia
aqui funciona como um dedo na ferida. Usando uma linguagem ainda mais pomposa:
funciona como um método freudiano desnudando nossos conceitos rotineiros e
desenterrando de nosso subconsciente as cruas verdades que, para o bem da
civilidade, preferimos ignorar. A mais crua destas verdades é que a Lei é
meramente uma invenção humana, um aprimoramento do “código de honra” que figura
nos mais básicos seres vivos dotados de sociabilidade. Preferimos, quase sempre
sem nos darmos contas, cobrir este fato com enfeites e misticismos, fazendo da
Lei um produto além da humanidade: ou ela é um produto da ordem universal ou,
ainda mais, uma fonte divina, cujos alicerces são inalteráveis.
Tudo isto, por
mais fincado que esteja em nossas culturas, soa embuste durante a situação
emergencial da França Nazista. Perante a urgência dos fatos, esquecem-se os
endeusamentos e parte-se para a praticidade: a Lei volta a ser refém das
maquinações políticas, uma mera massa barrenta a ser moldada por um círculo de
velhos e falíveis burocratas. A Lei justa corrompe-se à injustiça, mas, após
algumas validações formais, a própria injustiça se torna “justiça”, bastando
para isso apenas o rótulo de “medida de exceção”.
Ver a Justiça
ser esfacelada com tanta facilidade é tão trágico quanto cômico, e “Seção
Especial de Justiça” ergue-se como um dos melhores exemplares já produzidos
sobre cinema jurídico. De apelo universal, a idéia de “desnudar” os poderosos e
pomposos Senhores da Lei é magnificamente orquestrada em uma trama rica,
apoiada em uma direção poderosa e uma arte tão realista que flerta com o
nonsense. Tão obrigatório para os juristas quanto “Doze Homens e uma Sentença”,
este filme é mais valioso que uma seção inteira de livros jurídicos. Isso sem
mencionar suas espantosas qualidades cinematográficas, que o tornam um
filme-modelo sobre excelência no cinema.
Esta obra é
uma aula sobre o cinema europeu-continental. Em contraste com as extravagâncias
e a expansividade de seu irmão americano, o cinema europeu prefere a
simplicidade em todas as formas, seja no construir da história à hora de
divulgar o projeto. São dois cinemas muito diferentes: os americanos têm com a
câmera uma relação empregatícia; os europeus as tratam com intimidade. O cinema
americano é grandiloqüente e ambicioso, enquanto o cinema europeu é humilde e
delicado. Aquele falha por romantizar excessivamente a realidade, enquanto este
parece sofrer de uma constante crise imaginativa. Aceitar cada um destes
cinemas é comprar suas propostas e apreciá-los pelo que eles são. “Seção
Especial de Justiça” é um perfeito exemplar do cinema comedido da Europa
continental, uma magnífica aula de como retratar a vida com fidelidade e ainda
assim contar uma história, fictícia ou não.
Os diálogos,
se necessário apontar um único ponto forte neste filme, são um primor.
Transitam entre denúncia (“Com esta lei,
poderemos condenar qualquer um por qualquer crime!”) e a ironia (“- Ó, Deus, que caso escolhemos para
julgar? / - Escolha qualquer um. Não faz diferença nenhuma, mesmo...”). São
poderosos, dinâmicos, bem construídos, embora eu não possa dizer “sem
exceções”. Estranhamente, o filme assume alguns momentos irrealisticamente didáticos,
com os personagens descrevendo as situações históricas da trama mesmo sem ter
nenhum motivo para fazê-lo além do de julgar a platéia incapaz de entender o
que se passa. São momentos tão inúteis
que a mais básica revisão de roteiro os eliminaria. Em se tratando de um
roteiro tão excelente, é muito estranha a presença destes estranhos trechos.
Nada que dilua o
poder artístico e jurídico desta pequena jóia européia. “Seção Especial de
Justiça” jamais cansa, apesar de se sustentar basicamente em diálogos; vale-se
de grandes sacadas de edição, uma história geniosa, personagens bem trabalhados
e um retrato assustadoramente real da ocupação nazista na França. Sua pequena divulgação fora das fronteiras
européias pode escusar o seu desconhecimento por parte dos cinéfilos. Sem essa
desculpa, porém, não tê-lo assistido é nada menos que imperdoável.
NOTA: 8,0
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