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domingo, 6 de novembro de 2011

A Festa de Babette (1987)



Já discorri algumas vezes sobre as naturezas distintas dos cinemas americano e europeu, e ultimamente venho reavaliando alguns filmes que me versam ainda mais sobre essas distinções. Elas não ditam a superioridade de um estilo sobre outro, obviamente; podem apenas apelar aos diferentes gostos do público e eu, particularmente, me vejo cada vez mais fascinado pela misteriosa simplicidade do cinema europeu; simplicidade que termina retratando, paradoxalmente, um universo formidavelmente complexo, capaz de sobrepujar os esforços megalomaníacos dos filmes ianques. “A Festa de Babette”, neste contexto, é um filme que demonstra como é possível embalar o complexo mundo das relações humanas – com todos os seus atritos, preconceitos, hipocrisias e relativismos – em uma abordagem assustadoramente cotidiana.

Este pequeno clássico do cinema europeu, responsável por trazer à Dinamarca o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1985, já nos mostra a sua natureza inconstante com o decorrer dos minutos. “A Festa de Babette” poderia ser – e, de fato, é – resumido como um filme sobre um lendário banquete em um vilarejo esquecido nos recantos da Dinamarca. Mas esta é apenas uma de suas muitas facetas; não há uma história central no filme, e podemos questionar também onde é o seu começo e seu fim. “A Festa de Babette” é um conjunto de histórias que, mesmo sem terem necessariamente conexão entre si, formam um filme familiar, reflexivo e, por fim, realista. Tentemos destrinchar um pouco deste universo...


Em meados do século XIX, há uma vila puritana encravada nos confins da Dinamarca, longe dos rebuliços que agitam os grandes centros europeus e, de certa forma, ignorantes do mundo além de suas próprias fronteiras. Nesse lugar, regrado por costumes espartanos, vivem duas irmãs conhecidas pela beleza memorável e marcadas, naturalmente, por um constante assédio masculino. O primeiro ato do filme gira em torno destas duas irmãs, e como suas vidas foram marcadas pela dualidade entre as oportunidades que a beleza lhes ofertava e as responsabilidades que a vida comunal exigia. Protegidas por um pai rigoroso a ponto de desprezar o casamento como uma “mera ilusão carnal”, suas vidas são marcadas pelos encontros e desencontros amorosos, alguns dos quais envolvendo um jovem oficial estrangeiro, um famoso tenor e jovem local.

Décadas depois, um segundo universo nos é apresentado quando Babette, uma misteriosa fugitiva de Paris, pede asilo e é acolhida no vilarejo. É inevitável o choque entre Babette, uma alma impregnada pelos liberalismos cosmopolitas das grandes potências, e os moradores da vila, um povo unido por fortes convicções cristãs e marcado por uma notória, embora não intencional, frieza. Tudo isso caminha para o terceiro ato, onde Babette organiza um formidável banquete em agradecimento aos moradores.

Tudo neste filme é conduzido de forma despretensiosa, calma e paciente. O mais notável, entretanto, é que o espectador jamais saberá para onde a trama o levará. Mais do que o impacto de um banquete sobre os espíritos dos moradores da vila, “A Festa de Babette” é a análise de toda uma cultura e uma dissertação sobre algumas notáveis personagens; no caso, o trio composto pelas duas irmãs e Babette. Algumas histórias não possuem conexão com a trama geral e o seu desenrolar é marcado por bruscas mudanças – como quando Babette ganha na loteria e usa o prêmio para realizar o banquete. O roteiro é imprevisível, assim como a vida, e o desenrolar das ações acontece de forma perturbadoramente cotidiana. Isso é um grande impacto para as mentes acostumadas com o cinema americano, cujas histórias sempre fazem parte de um contexto definido, e onde até as “reviravoltas” são friamente calculadas. O que ele ganha em fantasia, perde em realidade. É por isso que o cinema europeu é claramente superior em retratar a vida de forma fiel, mas poética.


O mais notável do filme é que seu evento-chave, o banquete, funciona como demolidor de todos os conceitos que foram construídos ao redor dos personagens e do ambiente. Aprendemos que o vilarejo é marcado por um clima moribundo e por uma religiosidade aguda, e que as duas irmãs nada são além de duas figuras desiludidas pelas oportunidades perdidas e resignadas à sua realidade tribal. O banquete, que muita preocupação causou nas mentes puritanas dos cidadãos, é o ponto em que toda essa rigidez é destruída; mesmo que apenas por um dia, conhecemos a natureza calorosa dos personagens, e a concha de hipocrisia e falsidade que cobre a vila é aberta pela primeira vez. Esta derrota do puritanismo pelos prazeres de uma boa culinária é um clímax poderoso e singelo, refletido até mesmo no estilo da fotografia: se todo o filme é gravado de forma sombria e morosa, as cenas ganham vida e cores conforme os pratos vão sendo servidos; um por um, os sorrisos começam a despontar nos rostos dos personagens, e o filme se conclui com um ar de calorosa fraternidade.

O banquete serve para a trama como muito mais do que uma oportunidade de elevação espiritual de seus personagens; é o ponto em que muitos fios soltos da história são unidos: algumas tramas paralelas finalmente ganham um sentido maior e as algumas feridas das duas desiludidas irmãs são curadas. Mais do que isso, o banquete também é a porta de entrada para a verdadeira identidade de Babette e para um grande enaltecimento ao espírito intrépido, aventureiro e rebelde dos artistas. O diálogo de ouro do filme se dá quando uma das irmãs descobre que Babette gastou todo o seu dinheiro na preparação do banquete, voltando a ser tão pobre como quando chegou na vila. “Você será pobre para sempre!”, exclama tristemente a mulher, ao que Babette responde antes de partir: “Um artista nunca é pobre”.

Com a humildade se conseguem grandes feitos, e o cinema europeu é um exemplo de que se pode ser grande sem ostentar grandeza. “A Festa de Babette”, perfeito exemplar deste pensamento, usa uma condução pequena, calma e rotineira para construir uma trama épica e profundamente poética sobre a humanidade. É um retrato do choque de civilizações, da espiritualidade e da modernidade, tudo na forma de uma jornada infinita percorrida a passos recatados. Devo mencionar também que este é um dos raríssimos filmes que devem ser vistos inúmeras vezes, pois ele ganha uma nova dimensão cada vez que é assistido.

Tal é o poder do cinema europeu, tão simples e tão incompreensível.


NOTA: 8,0

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