Ontem à noite, assisti novamente a “Amadeus”,
clássico do diretor Miloš Forman e arrasa-quarteirões no Oscar de 1984.
Comecei a vê-lo por volta das onze horas e, necessitando acordar muito cedo no
dia seguinte devido a vários compromissos, comprometi-me a assistir apenas uma
hora do filme e deixar o resto para depois. Uma hora se passou e eu posterguei
meu sono. “Só mais trinta minutos”. Trinta minutos depois, eu dei adeus ao meu
descanso. Percorri a relativamente longa duração de duas horas e quarenta minutos
do filme sem um único sinal de cansaço e, ao final, meu humor era o mesmo de
Salieri ao ajudar Mozart em suas composições por várias horas seguidas: “Não, eu não estou nenhum pouco cansado!”.
Some-se a isso o fato de que o filme me deixou “elétrico” por mais uma hora e
meia; perdi uma noite, ganhei um filme.
Verdade seja dita, não gostei de “Amadeus” da
primeira vez que o assistir, há três anos, mas isso foi mais por incapacidade
ou falta de maturidade mental. Ou ambas. Acontece que o filme funciona tão
espetacularmente em tantos níveis que eu duvido que alguma opinião sobre ele
possa estar completa com menos de 20 páginas. Aqui há a história principal, mas
o que importa é a imensa riqueza que se desprende de suas “ramificações”: as
metáforas, as mensagens ocultas, o sentido artístico que foi impresso em cada
acompanhamento musical e transição. Como todo grande filme, assistir a
“Amadeus” é um processo investigativo; é simplesmente muito divertido
destrinchar cena após cena tentando descobrir o que a engenhosa produção quis
dizer com elas. Ou se ela quis mesmo
dizer algo, e a mensagem que porventura surgiu emanou da própria arte e não da
intenção do artista.
A história retratada é fictícia com alguns
toques de realidade. Mas aqui é simplesmente delicioso ver como a ficção
transforma a vida desses dois músicos (Mozart & Salieri) em uma tragédia shakespeariana, com
direito a uma morte irônica e desgraçada (com Mozart, falido, compondo seu
próprio canto fúnebre) e a uma vida de tormentos e contínua degradação
profissional (com um Salieri riquíssimo, mas desconhecido). Aqui há aquela
grandeza de enredo, em que dois personagens e seus mundos totalmente distintos
estão sempre conectados, mas nenhum deles reconhece a dimensão dessa conexão,
tudo isso para culminar em um desfecho que encerra perfeitamente seus arcos
dramáticos. Ao espectador, o único que pode acompanhar esta conexão e como ela
é construída, resta o generoso (e assustador) deslumbre de ver como este
plano-mestre terminará.
Mas esta é apenas uma faceta da obra. Ao
acompanhar as carreiras de ambos, a primeira reflexão que surge é se o filme é
crítico a uma visão cínica de mundo ou se ele é um sádico que se deixa levar
por ela: os medíocres são engrandecidos e os grandes são esnobados. É irônico
ver como Salieri, auto-intitulado “Santo Patrono da mediocridade”, é declarado em
vida como “a mais brilhante estrela do firmamento musical” e como Mozart mal
consegue completar dez exibições de uma de suas melhores óperas à elite
vienense. E isso não se deve apenas pela influência do invejoso Salieri, que
faz de tudo para impedir o seu sucesso. No final, Mozart realmente é esnobado
por aqueles que supostamente deveriam reconhecer grandes talentos, pelos mais
educados cidadãos da capital musical do mundo: o Imperador boceja em uma de
suas peças e isso é o suficiente para condená-la; mesmo com grande parte da
platéia gostando do que vê, é muito melhor seguir a opinião do regente do que a
própria. Destrua-se a peça. Durante a exibição de Don Giovanni, quando Mozart conjura o pai na imagem de um general
morto, em um espetáculo emocionante até para mim, um leigo total, a platéia
sequer sabe quando deve aplaudir. O próprio Salieri salienta esse “defeito” de
Mozart e resume não apenas a sociedade, mas seu próprio caráter: “Ó, Mozart,
você superestima os vienenses”.
Aí vemos a verdadeira face de Salieri. De fato,
ela já era um tanto óbvia desde o início: o objetivo máximo de Salieri não é a
música, mas a glória. É o engrandecimento próprio e não a vontade de construir
algo realmente eterno. Ele mesmo, inconscientemente, está confortável com isso,
pois parece se guiar mais pelas opiniões alheias do que pelas próprias
convicções (se é que elas existem): ele conhece a podridão intelectual do
público a que toca, e adapta suas músicas a ela. Ele é como uma folha ao vento,
se deixando levar pelo sopro mais forte. É um escravo das massas, e as massas
recompensam sua servidão com prêmios materiais. Mozart, por sua vez, é aquela
pedra no sapato que insiste em mudar o “sistema” e afronta as multidões com
algo - ó, o horror! - novo! E, por
isso, ele é punido: sessões vazias, bocejos e um conselho do Imperador que se
torna um resumo da vida muitos grandes artistas: “Você é sem dúvida apaixonado,
mas... não sabe persuadir.” O sucesso não vai para quem cria o melhor produto,
mas para quem vende melhor.
De fato, o sucesso poderia ter sido de Mozart,
soubesse ele reconhecer seu mercado-consumidor. E a ironia - mais outra! - é
que aqueles que admiram sua obra são justamente os tidos como vagabundos e
ignorantes: tocando em concertos populares, Mozart consegue lotar imensos
prédios e, de fato, tocar o coração daqueles que são vistos pelas elites como
lixo do mundo. Basta olhar, em seu último concerto, como a multidão canta e
dança em respeitoso silêncio à música, irrompendo ao seu final em um aplauso
que ele nunca recebera da elite.
Mas a alma do filme realmente reside na relação
de amor e ódio de Salieri para com Mozart. É ela a que gera, em minha opinião,
a maior parte da glória que emana de Amadeus. Ela é profunda e mística, não
apenas um cabo-de-guerra estereotipado entre dois rivais, e, intencionalmente
ou não, funciona como o melhor guia de estudos à música clássica que eu já vi. Primeiro,
fica muito claro que Salieri possui grande amor à música, apenas ofuscado pelo
seu amor-próprio. De toda elite, ele - justo ele! - é o único capaz de
reconhecer o talento de Mozart. Ele mesmo pragueja essa condição: como é que
lhe foi negado o talento de criar a grandeza, mas lhe foi dada capacidade de
reconhecê-la em outrem? Fica fácil, assim, compreender sua natureza dual: ele
ama e respeita – quase a um ponto de orgasmo artístico - as composições de
Mozart, mas as odeia imensamente pelo fato de não ser ele o seu criador. Esse
respeito e ódio é, obviamente, transmitido também a Mozart. Graças a isso e à
atuação fora de comum de F. Murray Abraham, os momentos em que os rivais se
encontram são os melhores e mais tensos do filme. Nunca sabemos se Salieri fala
com ódio ou paixão, muito menos se ele o assaltará ali mesmo, no ato. Na
verdade, o melhor momento de todo o filme - e talvez o único em que a emoção de
Salieri é clara e única - é quando ele finalmente admite: “Em minha opinião, você
é o melhor compositor de todos.” Não sei se o melhor é isso ou o sorriso que se
segue, dolorosamente inocente, de Mozart.
Eu não sou um aficionado por música clássica e
sou incapaz de compreender a beleza de uma ópera. Mas o maior sucesso do filme
é que ele transmite essa beleza a mim. Isso porque, através de Salieri, que
reconta e recria suas sensações ao ouvir Mozart, nós finalmente conhecemos o
significado daquilo que ouvimos. Sua paixão é tão grande que passei por um
estado de transe a cada composição do filme - com direito a pêlos arrepiados e
mãos se mexendo como as de um maestro involuntariamente. “Amadeus” é um prodígio
generoso: ele descobre como transmitir o significado de outra arte e o faz sem
restrições. E não só através de seus personagens que recebemos lições de
música; este é um filme inteiramente pautado sobre ela - a última obra tão
meticulosamente regida pela trilha sonora, creio eu, foi “2001: Uma Odisséia no
Espaço”. Os establishing shots são
sempre acompanhados com uma seleção de Mozart - e há um sentido por trás de
cada um deles, típico de uma direção que gosta de provocar o público. As
transições são o marco-zero do que julgo ser uma técnica perfeita: elas são imensamente
criativas! Seja na interrupção brusca de uma composição em pleno clímax,
gerando uma frustração imediatamente seguida de comicidade, seja no amassar de
uma folha, cujo barulho é usado como causa do espanto de um grupo de cervos na
cena seguinte. É por isso que acredito que Forman seja um dos melhores
diretores já vistos, mesmo que ele não tenha produzido nada de relevante
(leia-se: “mainstream”) desde “O Povo
contra Larry Flynt”. Síndrome de Mozart?
Enfim, para tornar esta coluna “publicável”,
não chegarei nem perto das ideais 20 páginas. E, acreditem, há muito mais
riqueza que foi deixada para trás neste texto: a relação de Mozart com a esposa
e o pai, as críticas políticas que jazem escondidas nas cenas da Corte vienense,
a própria atuação de Tom Hulce e a personalidade única de seu personagem, a
hipocrisia que salta aos olhos nas cenas envolvendo o Arcebispo de Viena... É
difícil dizer que todas essas jóias ocultas tenham sido esculpidas e escondidas
pela produção; mais provável que elas sejam o resultado natural de uma grande
obra, que ganha vida e se expande, quase que fora de controle, aos olhos do
espectador. Como quase toda grande obra, também, ela deixa certo gosto amargo
na boca: “Amadeus” adota uma visão cínica de mundo e encerra-se em estado de
“desgraça total”, com o gênio esnobado, falido e reconhecido apenas após a
morte e o medíocre rico, influente, mas invisível à História. Sinta-se livre
para traçar paralelos com nosso mundo atual.
NOTA: 10
Este é um filme que ainda não assisti.
ResponderExcluirPreciso corrigir a falha.
Abraço