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segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Skyfall (2012)


Alguns reboots fazem bem a uma franquia e qualquer um deve reconhecer o magnífico trabalho que a Sony fez com “007”. Mais do que um serviço ao cinema, creio que o novo gás dado à série foi um bem para a cultura humana, como a restauração de uma grande obra de arte. A marca “007” já está muito além das muralhas do cinema ou do entretenimento: desde que o mulherengo e bon vivant Fleming teve idéia de escrever um dos maiores arquétipos da ficção e, principalmente, que Hollywood decidiu levá-lo às telas, “007” se tornou o espelho dos valores ocidentais modernos, modificando-os e por eles sendo modificado. Um espelho masculino, é verdade (mesmo as mulheres mais fortes dos novos filmes pouco fazem para derrotar o ar de pura testosterona que impregna a marca “Bond”): durante toda sua existência como filme, não importam os altos e baixos ou a troca de atores, o personagem James Bond permaneceu como símbolo máximo da masculinidade. Todos os homens desejam se vestir como Bond, falar como Bond, ser Bond1! Não conheço outro personagem ou série com tamanha persistência cultural.

“007” nunca foi apenas entretenimento. Está mais para um guia de estilo de vida. Isso sozinho já espanta as sombras do comercialismo chulo, então não surpreende que “Skyfall”, no mínimo, valeria à pena. Mas será que ele consegue celebrar os 50 anos de influência cultural com proporcional grandeza? A esta altura, você sabe que sim. Mas isso não faz dele um clássico. É justo: “007” vale mais pelo todo do que pelas partes. Seus filmes, separados, jamais serão discutidos com reverência nos círculos de cinéfilos ou críticos, mas série sim. “Skyfall” é único, e o melhor da franquia, porque condensa TODOS os 007 conhecidos em um; é o que mais chega perto de representar sozinho toda uma tradição histórica. É um filme independente, mas também uma estátua em honra à série, um tributo que ela faz a si mesma. É empolgante, é engraçado, é tosco, é sexy, é comovente, é retrô. É Bond.

Mas a obra não atinge seu potencial até certo tempo. Durante seus dois primeiros atos, ela não passa de um ótimo filme de ação, assim como tantos por aí (e tantos “007”). Não estou reclamando; nos dias de hoje, isso já é uma bênção! Mas a história não vai além do gato-e-rato (no caso, dois ratos) que já conhecemos: o vilão marcante que está sempre um pé á frente, os sofrimentos dos mocinhos para alcançá-lo, a correria e o quebra-quebra pautados pelo exagero comedido à moda “Nolan”... e é claro, as mulheres, os martinis e o luxo. “Quantum of Solace” não foi nada diferente, mas pecava (assim como o grosso dos filmes da série) por não ser excepcional (a não ser nas cenas de luta, as melhores de todas).

É apenas no terceiro ato, após o ataque falho de Raoul Silva (ou Tiago Rodriguez) no tribunal, que “Skyfall” inspira a seriedade e o respeito dos filmes realmente grandes. Mudando de tom, de estilo e, céus, até de fotografia, o filme dá uma guinada e nos leva ao que só pode ser o coração da série. O retorno de James Bond à Skyfall é também o mergulho da série em sua própria consciência; o olhar para os 50 anos de conquistas e fracassos de cinema, para o tudo de bom e de ruim que a série nos legou durante todo esse tempo2. Só posso comparar a chegada deste terceiro ato com a chegada de Charles Chaplin após uma apresentação de Billy Crystal: ambos são grandes artistas, mas apenas um inspira o respeito de uma lenda.

E não foi uma tacada de sorte. O filme - neste caso, o roteiro - está muito ciente do projeto que comprou. Antes de embarcar de volta às raízes, Bond anuncia: “Vamos voltar ao passado”. É mais um aviso ao público do que uma peça de diálogo. E não há nada mais glorioso em executar esse projeto com o Aston Martin percorrendo os vales escoceses. Desculpem-me por ficar emotivo (e, portanto, piegas), mas é neste momento em que “007” deixa de ser diversão e se torna poesia.

Mais digno de nota é como todo esse espetáculo jamais se torna uma homenagem per si, uma auto-bajulação dissociada de história. Tudo que vemos faz perfeito sentido com os cem minutos anteriores. O significado deste ato funciona em duas vias: do filme com o público e do filme com seus personagens. Quando a obra começa a analisar seu histórico, o James Bond de Craig também confronta o seu; a série medita sobre sua existência enquanto os personagens se aprofundam , obviamente, até os limites do universo estabelecido pelo reboot. O Bond de Craig jamais se transformará no Bond de Connery ou no de Brosnan (embora ele muitas vezes, só por brincadeira, os emule), mas nós veremos todos eles, juntos, emanando da tela.

E o que dizer da coragem admirável do roteiro em pôr fim a uma personagem tão querida do reboot em seu desfecho? Durante a série, personagens vieram e se foram, mas esta é a primeira vez que vemos um tão importante de fato morrer e desaparecer na continuidade da própria geração, e não apenas sumir pelas exigências de próximos e diferentes filmes. O roteiro é maduro (e macho) o suficiente para pregar ao público a maior virtude da franquia: a renovação. Foi pelo ato de se renovar que “007” continua tão forte até hoje. E renovar nunca é fácil: o velho tem que sair para que o novo consiga espaço. Mas como foi difícil nos livrarmos desse velho em particular!

Uma coisa, contudo, permanece igualmente boa nas duas partes deste filme: as atuações. Não é apenas pelos personagens serem muito, muito bem escritos; os atores aqui nos jogam performances que esperaríamos apenas em filmes-Oscar. Não vamos ficar chutando cachorro morto, contudo. É óbvio que Judi Dench, Ralph Fiennes e Ben Whishaw se saem do jeito que você bem esperava. E falar de Bardem, a melhor coisa para o cinema saída da península ibérica desde Pedro Almodóvar, também seria meio-termo. Mas ele jamais rouba o filme, pois o equilíbrio construído por Sam Mendes (é tão bom ver o diretor de volta em tão grande estilo) é fabuloso (e Craig também é um titã à parte). Mas é claro que eu darei destaque a uma certa cena extremamente bem humorada que “ousa” questionar a sexualidade dos dois maiores símbolos de virilidade do cinema atual! Brincadeiras à parte, as atuações são capazes de nos dar momentos perturbadoramente bons, como quando a personagem de Bérénice Marlohe, ao ouvir que Bond deseja encontrar seu chefão, se vê desmascarada. O silêncio que se segue é anormal para um blockbuster, e as reações da atriz são tão sutis e carregadas de emoções que temos a Atuação em seu zênite3. Que vergonha que um filme “de ação” consiga fazer o que tantos auto-intitulados “filmes-arte” nem chegam perto de atingir!

E é claro... os easter eggs! O filme faz tantas pequenas homenagens (e piadas) consigo mesmo e com a série que não tenho dúvida que os muito fãs contarão dezenas de pequenas (talvez micro) referências nos cenários ou os diálogos. Mesmo eu, um leigo neste território, contei pelo menos oito referências que qualquer um que ouviu o nome 007 saberá identificar.

Enfim, se eu tivesse que recomendar o filme, apenas a sua primeira parte já seria o suficiente. Mas tudo ganha proporções tão maiores no terceiro ato que ele vira uma obrigação para cinéfilos, conhecedores ou não da série. É quando tudo se torna uma Experiência: aquele momento em que o filme se comunica na linguagem universal das grandes obras. Não é o suficiente para transformá-lo em um clássico, mas é o que basta para um 007 perfeito.

NOTA: 8,5

1Na verdade, eu acho que um homem que não é como o James Bond de seu tempo não é 100% homem;
2Alguns irão reclamar por eu parecer ignorar a mais longa história do agente secreto na literatura, mas convenhamos: James Bond só ganhou as dimensões que tem hoje por causa dos filmes! É a esta dimensão a que me refiro, e é por ela que quase todos conhecem o agente;
3Atuação tão pura que eu a escrevi com letra maiúscula e acompanhada de um termo praticamente extinto no vocabulário português.

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