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quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Steamboy (2004)



Um carnaval. Esta é a melhor descrição que posso fazer de “Steamboy”, ao menos após cessar o torpor causado por suas duas horas de ambiciosa e vivaz confusão. É lindo, complexo e cheio de energia, mas sem jamais fazer muito sentido. Esse é um daqueles filmes inclassificáveis (algo muito comum em malfadadas produções japonesas): incrivelmente bem feito para ser um filme ruim, mas tremendamente caótico para ser bom, cujo paralelo mais recente – pelos menos o que eu consigo me lembrar – seria o mal-amado “Contos de Terramar”, de Göro Miyazaki.

Para se ter uma idéia da contradição em que esta obra nos prende, leve em conta de que, durante toda duração, eu era tentado a pular partes e avançar a história. Ao mesmo tempo, porém, eu permanecia curioso para ver sua próxima cena, seu próximo shot, mesmo ciente de que nada minimamente interessante aconteceria. Eu estava aborrecido até os ossos e fascinado até a flor da pele (isso fez sentido?).

Posso dizer que se o quesito é esforço, “Steamboy” merece um troféu: os valores de produção são incalculáveis. Durante seu lançamento, era o anime mais caro já produzido, consumindo vinte muito bem utilizados milhões de dólares para criar uma animação enlouquecedora, desenhos e cenários de cair o queixo e cenas de ação que fariam Michael Bay baixar a cabeça em respeitosa humildade. O filme enfrentou problemas de produção e levou em torno de oito anos para ficar pronto (isso se reflete em sua frágil estrutura narrativa, todavia), com a equipe lutando contra o orçamento e a tecnologia da época para expandir os limites da animação. O resultado: “Steamboy” é, visualmente, o anime mais completo já feito (o que não quer dizer o melhor), com todos os tipos de técnicas e truques utilizados para compor o produto final. Por exemplo, o filme faz uso constante de uma câmera móvel que segue os personagens enquanto eles caminham e passeia pelo ambiente em todos os ângulos possíveis, tal como Scorsese habitualmente faz (seu exemplo mais recente: “A Invenção de Hugo Cabret”). Talvez este seja o truque mais difícil envolvendo animação tradicional (vulgo, “2D”), pois o cenário, composto por elementos não-móveis, precisa se modificar de acordo com a câmera, mas “Steamboy” se sai triunfal e deixa um espetáculo técnico a ser contemplado.

Com isso dito, seria fácil acusá-lo de ter “técnica sobre qualidade”, “visual sobre narrativa”, da mesma maneira que diretores como Tarsem Singh ou o citado Michael Bay costumam fazer aqui no ocidente. Mas isso seria uma insensatez sem tamanho, pois o filme também é admirável pelo que ele pretende contar: a narrativa de “Steamboy” só pode ser bem descrita como uma “overdose de grandes idéias”, tentando misturar o embate entre ética e desenvolvimento científico com um cenário steampunk, criando tecnologias fascinantes (a esfera de alta-pressão e as máquinas dela advindas) e até mesmo mantendo coerência no nível da física (lembro-me quando meu professor de física do ensino médio exibiu uma cena do filme em sala de aula para demonstrar os efeitos de um gás sobre alta pressão sendo liberado, um fenômeno central na obra).

Talvez por reconhecer esse incrível potencial e esforço do filme que eu tenha me recusado a pular um segundo sequer dele. Infelizmente, eu queria pular! O tempo todo! Embora sempre haja muita coisa acontecendo na tela, eu passei o filme todo bastante entediado, pois “Steamboy” não consegue esconder suas graves falhas de ritmo e narrativa. O primeiro defeito – pelo menos o mais fácil de apontar, logo de cara – talvez seja que, embora tenha muitíssimas ótimas idéias, o filme não saiba organizá-las nem siga uma linha de raciocínio única e coesa. É o típico caso de uma obra que dispara para todos os lados; do sapo que tenta abrir a boca até o infinito e termina se engolindo. É visível que os roteiristas Sadayuki Murai e Katsuhiro Otomo (sim, o semideus japonês responsável por “Akira”) estavam excitadíssimos ao escrever o filme (evoco até a imagem estereotipada de dois nerds que vêm as fantasias mais profundas sendo realizadas), mas a excitação superou o autocontrole.

Falta disciplina neste filme. O excesso não se demonstra apenas nas idéias, mas também na narrativa, que não sabe para onde vai e, tal como a nuvem de gelo no fim da obra, ameaça despedaçar-se ao mais leve toque. É bastante comum que os personagens mudem de opinião e atitude a cada dez minutos, prejudicando bastante a construção de suas personalidades (de fato, são todos um tanto ocos), que situações sem sentido aconteçam apenas por conveniência narrativa e que sejam ignorados furos e mais furos. Os exemplos são muitos: como é que as máquinas revolucionárias da Fundação O’Hara funcionam, já que não estão conectadas às esferas de pressão (o mecanismo que supostamente possibilita suas existências)? Porque o personagem Edward havia preparado aquele macacão voador (que, miraculosamente, cabe como uma luva no corpo do filho, mesmo que este seja dez vezes menor que o corpulento pai)? E porque escondê-lo em um compartimento secreto, que é (convenientemente) descoberto pelo filho no último instante? Como é que um dos capangas da O’Hara sabia dos planos do garoto e de seu avô para destruir a Torre de Vapor, podendo então atacar o menino de surpresa? Porque Edward, ferrenho defensor da Torre, muda de idéia e passa a ajudar o pai/rival a destruí-la? E a lista segue além de onde a vista alcança.

Quando consegue prestar atenção em uma coisa, o filme a trata de modo superficial e batido. O embate-central da animação é a validade da ciência para o homem: deveria a Marcha da Ciência prosseguir mesmo quando desprovida de ética? Mais uma vez: tema ousado e cheio de potencial, mas analisado de maneira rasteira. Diferente de obras como “Solaris”, que tratam disso tão bem e com muito menos esforço (“A moral é aquilo que o homem determina”), os personagens de “Steamboy” se resumem a disparar chavões, jamais justificando a urgência que o filme quer construir (“A ciência deve servir ao homem, não ao lucro” / “Seu pai é um cientista que se vendeu ao capitalismo!” / “Essa descoberta só irá beneficiar os acionistas!”, blá, blá, blá).

Além do mais, o filme cai em uma armadilha que ofende os espectadores com sério interesse nos temas que retrata: da mesma forma que “Avatar” se resume no discurso “imperialismo = mau, natureza = bom”, “Steamboy” segue a linha “capitalismo & guerra = maus”... er, não sei exatamente o que o filme defende como “bom” (seria o socialismo? Seria o idealismo do homem pelo homem? Sério, o que seria?), mas o antagonismo que ele constrói é bem infantil. Em certo momento, uma personagem pergunta: “Mas o que há de errado em fabricar armas? Foi assim que sempre fizemos!”. Pois é, o que há de errado? Os idealistas que me desculpem, mas as guerras, embora indesejáveis, são inevitáveis, e desde que o capitalismo é conhecido como tal há empresas armamentícias cumprindo seu papel no grande esquema. As guerras merecem ser evitadas a todo custo, mas nem por isso devemos jogar pedras na Lockheed Martin!

E é ridícula a chantagem emocional que justifica a mudança de comportamento da mesma personagem: ao ver um cadáver, ela exclama “Ei... mas isso... é um homem! Ele está morto!”. Sim, minha querida, pode parecer impressionante, mas, na guerra, as pessoas costumam morrer. O antimilitarismo do filme poderia ser justificado no fato de que a empresa, para demonstrar seus produtos, resolve atacar civis. Ok, isso revela claramente que eles são uns perfeitos bastardos e que merecem ser impedidos. Entretanto... por que atacar civis, oras?! Por que não demonstrar as habilidades das esferas revolucionárias de forma pacífica, o que seria muito mais convincente para os investidores? O ataque da indústria contra civis não mostra que as armas devem ser evitadas; mostra que os personagens por trás do plano são muito estúpidos!

Também devo mencionar que quase metade do filme é uma batalha. Não estou brincando: das duas horas de duração, quase uma é com o embate entre os mocinhos e os vilões! A segunda metade da animação é construída em um ritmo de “clímax constante”, sem contar as diversas cenas de ação presentes na primeira parte. É aí que encontramos outro problema, talvez o mais grave do filme: ele não tem ritmo! Mesmo quando as cenas mais over-the-top são exibidas, é impossível conter o tédio. Os diálogos são dolorosamente longos, e vemos com freqüência personagens recitando textos inteiros nos momentos mais inadequados possíveis. Suas ações, durante as batalhas, deixam a impressão de que o filme é como um game por turnos (turn-based vídeo game). Lembram-se das lutas em “O Último Mestre do Ar”? É por aí...

A trilha sonora não ajuda em nada; pelo contrário, ela só reforça o caráter arrítmico da obra. Composta pelo competente, mas irregular, Steve Jablonsky, aqui temos uma trilha sonora dissociada das imagens do filme, como se encomendada à parte, e quase presa em um modo-automático perpétuo. Aliás, as músicas usadas durante as cenas de Ray em sua cidade-natal são tão bobinhas e repetitivas que parecem tiradas da trilha sonora de “The Sims 3” (não ironicamente, também feita por Jablonsky).

Mas, apesar de tudo isso, resta um grande consolo: o filme é considerado, para os padrões nipônicos, algo “ruim”. Isso dá uma dimensão do padrão de exigência daquele povo! Não se intimidem com a abundância de problemas que ele carrega; assim como “Avatar” ou “Final Fantasy”, o filme conta com uma ambição contagiante que só não é acompanhada pela narrativa. Embora falho, merece uma estrelinha por esforço.

NOTA: 6,0

P.S.: para ter mais uma idéia do quão bagunçada é a linha narrativa do filme, confira as cenas dos créditos finais. É exibida uma seqüência de fotos dos eventos que se seguem ao (brusco) desfecho, mas quase todos nada têm a ver com o filme a que acabamos de assistir! Em uma delas, mostra-se Ray duelando contra uma espécie de Dragão Metálico na Torre Eiffel; noutra, o seu avô lhe entrega uma espécie de lâmpada que, nas cenas seguintes, parece influir nos rumos da Segunda Guerra Mundial. Noutra, temos Ray no topo de um edifício, em pose de herói e sendo tratado como tal. Afinal, para quê tudo isso? Mesmo revelando um futuro, elas vão muito além do que é induzido pelo filme (por exemplo: Ray se portando como um herói, no melhor estilo “Superman”). Resta a conclusão de que as cenas ou seriam idéias descartadas ou planos para uma seqüência, o que reforça a impressão de que a equipe estava querendo abarcar mais do que conseguia.

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