Um carnaval.
Esta é a melhor descrição que posso fazer de “Steamboy”, ao menos após cessar o
torpor causado por suas duas horas de ambiciosa e vivaz confusão. É lindo,
complexo e cheio de energia, mas sem jamais fazer muito sentido. Esse é um
daqueles filmes inclassificáveis (algo muito comum em malfadadas produções
japonesas): incrivelmente bem feito para ser um filme ruim, mas tremendamente
caótico para ser bom, cujo paralelo mais recente – pelos menos o que eu consigo
me lembrar – seria o mal-amado “Contos de Terramar”, de Göro Miyazaki.
Para se ter
uma idéia da contradição em que esta obra nos prende, leve em conta de que,
durante toda duração, eu era tentado a pular partes e avançar a história. Ao
mesmo tempo, porém, eu permanecia curioso para ver sua próxima cena, seu
próximo shot, mesmo ciente de que nada minimamente interessante aconteceria. Eu
estava aborrecido até os ossos e fascinado até a flor da pele (isso fez
sentido?).
Posso dizer
que se o quesito é esforço, “Steamboy” merece um troféu: os valores de produção
são incalculáveis. Durante seu lançamento, era o anime mais caro já produzido,
consumindo vinte muito bem utilizados milhões de dólares para criar uma
animação enlouquecedora, desenhos e cenários de cair o queixo e cenas de ação
que fariam Michael Bay baixar a cabeça em respeitosa humildade. O filme
enfrentou problemas de produção e levou em torno de oito anos para ficar pronto
(isso se reflete em sua frágil estrutura narrativa, todavia), com a equipe
lutando contra o orçamento e a tecnologia da época para expandir os limites da
animação. O resultado: “Steamboy” é, visualmente, o anime mais completo já
feito (o que não quer dizer o melhor), com todos os tipos de técnicas e truques
utilizados para compor o produto final. Por exemplo, o filme faz uso constante
de uma câmera móvel que segue os personagens enquanto eles caminham e passeia
pelo ambiente em todos os ângulos possíveis, tal como Scorsese habitualmente
faz (seu exemplo mais recente: “A Invenção de Hugo Cabret”). Talvez este seja o
truque mais difícil envolvendo animação tradicional (vulgo, “2D”), pois o
cenário, composto por elementos não-móveis, precisa se modificar de acordo com
a câmera, mas “Steamboy” se sai triunfal e deixa um espetáculo técnico a ser
contemplado.
Com isso dito,
seria fácil acusá-lo de ter “técnica sobre qualidade”, “visual sobre
narrativa”, da mesma maneira que diretores como Tarsem Singh ou o citado
Michael Bay costumam fazer aqui no ocidente. Mas isso seria uma insensatez sem
tamanho, pois o filme também é admirável pelo que ele pretende contar: a
narrativa de “Steamboy” só pode ser bem descrita como uma “overdose de grandes
idéias”, tentando misturar o embate entre ética e desenvolvimento científico
com um cenário steampunk, criando
tecnologias fascinantes (a esfera de alta-pressão e as máquinas dela advindas)
e até mesmo mantendo coerência no nível da física (lembro-me quando meu
professor de física do ensino médio exibiu uma cena do filme em sala de aula
para demonstrar os efeitos de um gás sobre alta pressão sendo liberado, um
fenômeno central na obra).
Talvez por
reconhecer esse incrível potencial e esforço do filme que eu tenha me recusado
a pular um segundo sequer dele. Infelizmente, eu queria pular! O tempo todo! Embora sempre haja muita coisa acontecendo
na tela, eu passei o filme todo bastante entediado, pois “Steamboy” não
consegue esconder suas graves falhas de ritmo e narrativa. O primeiro defeito –
pelo menos o mais fácil de apontar, logo de cara – talvez seja que, embora
tenha muitíssimas ótimas idéias, o filme não saiba organizá-las nem siga uma
linha de raciocínio única e coesa. É o típico caso de uma obra que dispara para
todos os lados; do sapo que tenta abrir a boca até o infinito e termina se
engolindo. É visível que os roteiristas Sadayuki Murai e Katsuhiro Otomo (sim,
o semideus japonês responsável por “Akira”) estavam excitadíssimos ao escrever
o filme (evoco até a imagem estereotipada de dois nerds que vêm as fantasias
mais profundas sendo realizadas), mas a excitação superou o autocontrole.
Falta
disciplina neste filme. O excesso não se demonstra apenas nas idéias, mas
também na narrativa, que não sabe para onde vai e, tal como a nuvem de gelo no
fim da obra, ameaça despedaçar-se ao mais leve toque. É bastante comum que os
personagens mudem de opinião e atitude a cada dez minutos, prejudicando
bastante a construção de suas personalidades (de fato, são todos um tanto
ocos), que situações sem sentido aconteçam apenas por conveniência narrativa e
que sejam ignorados furos e mais furos. Os exemplos são muitos: como é que as
máquinas revolucionárias da Fundação O’Hara funcionam, já que não estão
conectadas às esferas de pressão (o mecanismo que supostamente possibilita suas
existências)? Porque o personagem Edward havia preparado aquele macacão voador
(que, miraculosamente, cabe como uma luva no corpo do filho, mesmo que este
seja dez vezes menor que o corpulento pai)? E porque escondê-lo em um
compartimento secreto, que é (convenientemente) descoberto pelo filho no último
instante? Como é que um dos capangas da O’Hara sabia dos planos do garoto e de
seu avô para destruir a Torre de Vapor, podendo então atacar o menino de
surpresa? Porque Edward, ferrenho defensor da Torre, muda de idéia e passa a
ajudar o pai/rival a destruí-la? E a lista segue além de onde a vista alcança.
Quando
consegue prestar atenção em uma coisa, o filme a trata de modo superficial e
batido. O embate-central da animação é a validade da ciência para o homem:
deveria a Marcha da Ciência prosseguir mesmo quando desprovida de ética? Mais
uma vez: tema ousado e cheio de potencial, mas analisado de maneira rasteira.
Diferente de obras como “Solaris”, que tratam disso tão bem e com muito menos
esforço (“A moral é aquilo que o homem
determina”), os personagens de “Steamboy” se resumem a disparar chavões,
jamais justificando a urgência que o filme quer construir (“A ciência deve servir ao homem, não ao lucro”
/ “Seu pai é um cientista que se vendeu
ao capitalismo!” / “Essa descoberta
só irá beneficiar os acionistas!”, blá, blá, blá).
Além do mais,
o filme cai em uma armadilha que ofende os espectadores com sério interesse nos
temas que retrata: da mesma forma que “Avatar” se resume no discurso
“imperialismo = mau, natureza = bom”, “Steamboy” segue a linha “capitalismo
& guerra = maus”... er, não sei exatamente o que o filme defende como “bom”
(seria o socialismo? Seria o idealismo do homem pelo homem? Sério, o que
seria?), mas o antagonismo que ele constrói é bem infantil. Em certo momento,
uma personagem pergunta: “Mas o que há de
errado em fabricar armas? Foi assim que sempre fizemos!”. Pois é, o que há
de errado? Os idealistas que me desculpem, mas as guerras, embora indesejáveis,
são inevitáveis, e desde que o capitalismo é conhecido como tal há empresas
armamentícias cumprindo seu papel no grande esquema. As guerras merecem ser
evitadas a todo custo, mas nem por isso devemos jogar pedras na Lockheed Martin!
E é ridícula
a chantagem emocional que justifica a mudança de comportamento da mesma
personagem: ao ver um cadáver, ela exclama “Ei...
mas isso... é um homem! Ele está morto!”. Sim, minha querida, pode parecer
impressionante, mas, na guerra, as pessoas costumam morrer. O antimilitarismo
do filme poderia ser justificado no fato de que a empresa, para demonstrar seus
produtos, resolve atacar civis. Ok, isso revela claramente que eles são uns
perfeitos bastardos e que merecem ser impedidos. Entretanto... por que atacar
civis, oras?! Por que não demonstrar as habilidades das esferas revolucionárias
de forma pacífica, o que seria muito mais convincente para os investidores? O
ataque da indústria contra civis não mostra que as armas devem ser evitadas;
mostra que os personagens por trás do plano são muito estúpidos!
Também devo
mencionar que quase metade do filme é uma batalha. Não estou brincando: das
duas horas de duração, quase uma é com o embate entre os mocinhos e os vilões!
A segunda metade da animação é construída em um ritmo de “clímax constante”,
sem contar as diversas cenas de ação presentes na primeira parte. É aí que
encontramos outro problema, talvez o mais grave do filme: ele não tem ritmo!
Mesmo quando as cenas mais over-the-top
são exibidas, é impossível conter o tédio. Os diálogos são dolorosamente
longos, e vemos com freqüência personagens recitando textos inteiros nos
momentos mais inadequados possíveis. Suas ações, durante as batalhas, deixam a
impressão de que o filme é como um game
por turnos (turn-based vídeo game).
Lembram-se das lutas em “O Último Mestre
do Ar”? É por aí...
A trilha
sonora não ajuda em nada; pelo contrário, ela só reforça o caráter arrítmico da
obra. Composta pelo competente, mas irregular, Steve Jablonsky, aqui temos uma
trilha sonora dissociada das imagens do filme, como se encomendada à parte, e
quase presa em um modo-automático perpétuo. Aliás, as músicas usadas durante as
cenas de Ray em sua cidade-natal são tão bobinhas e repetitivas que parecem
tiradas da trilha sonora de “The Sims 3”
(não ironicamente, também feita por Jablonsky).
Mas, apesar
de tudo isso, resta um grande consolo: o filme é considerado, para os padrões
nipônicos, algo “ruim”. Isso dá uma dimensão do padrão de exigência daquele
povo! Não se intimidem com a abundância de problemas que ele carrega; assim
como “Avatar” ou “Final Fantasy”, o filme conta com uma ambição contagiante que
só não é acompanhada pela narrativa. Embora falho, merece uma estrelinha por
esforço.
NOTA: 6,0
P.S.: para
ter mais uma idéia do quão bagunçada é a linha narrativa do filme, confira as
cenas dos créditos finais. É exibida uma seqüência de fotos dos eventos que se
seguem ao (brusco) desfecho, mas quase todos nada têm a ver com o filme a que
acabamos de assistir! Em uma delas, mostra-se Ray duelando contra uma espécie
de Dragão Metálico na Torre Eiffel; noutra, o seu avô lhe entrega uma espécie
de lâmpada que, nas cenas seguintes, parece influir nos rumos da Segunda Guerra
Mundial. Noutra, temos Ray no topo de um edifício, em pose de herói e sendo
tratado como tal. Afinal, para quê tudo isso? Mesmo revelando um futuro, elas
vão muito além do que é induzido pelo filme (por exemplo: Ray se portando como
um herói, no melhor estilo “Superman”). Resta a conclusão de que as cenas ou seriam
idéias descartadas ou planos para uma seqüência, o que reforça a impressão de
que a equipe estava querendo abarcar mais do que conseguia.
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