É estranho olhar para trás no tempo
e perceber como o “Último Tango em Paris” conseguiu se meter em tamanha
confusão. Seus defensores, coitados, tinham que se esforçar para conseguir voz
no meio de uma multidão tão louca que parecia saída da Idade Média. Esse foi um
filme que fazia, conforme relatos, damas mais sensíveis saírem vomitando e
chorando das salas de cinema. Várias tentativas de censura foram levantadas em
todo lugar onde era exibido; quando falhavam, multidões inteiras iam às portas
das sessões em protesto e boicote. Os conservadores e religiosos o tinham como
uma profanação sem limites. As feministas o consideravam uma peça ultrajante à
imagem da mulher. Os críticos o atacavam como “pornografia disfarçada de arte”.
Era uma bagunça!
Mas o tempo, o melhor justiceiro de
todos, fez seu trabalho - e as bilheterias também. A obra mais polêmica de
Bernardo Bertolucci foi um sucesso, atraindo as mesmas multidões jovens que
antes tiveram o gostinho da rebeldia em filmes como “Laranja Mecânica” ou
“M*A*S*H” (ainda eram anos herdeiros dos hippies, então a experimentação
continuava em alta). Mas o filme não envelheceu tão bem quanto deveria, pelo
menos em seu aspecto chocante. Embora quase todo mundo ligue seu título a
propriedades não-culinárias da manteiga, poucos são os que de fato viram a
cena. “Último Tango em Paris” entrou para a vasta categoria de filmes que todos
dizem conhecer, mas que só poucos viram.
Sua ferocidade sexual é o elemento
que definitivamente não envelheceu bem. Se o filme é um “pornô-arte”, tornou-se
um pornô soft: em quase nenhuma das cenas de sexo vemos os dois personagens
nus. Quando estão, são em momentos de linda intimidade, nos quais a arte de
Bertolucci funciona maravilhosamente. Os atos em si são poucos e rápidos, e memoráveis
não pelo sexo, mas pelo tratamento bizarro que o roteiro lhes dá (falaremos
disso adiante). Desconfio que nenhum espectador moderno veja nessas cenas o
ultraje que os cidadãos dos anos 70 viram. Se “fator-choque” era importante
para a obra, hoje ele se perdeu diante da insensibilização da sociedade perante
o sexo. As maiores perversões de Brando com Schneider podem ser vistas sem
problemas nas categorias mais leves de certos sites na internet (if you know what I mean)1.
O bom é que o impacto do sexo não é
tão importante como os exagerados “setentistas” diziam. Se o tempo corroeu esta
camada mais frágil, seu firme lado atemporal continua a impressionar. Talvez
tenha até ganho um novo significado, embora eu não saiba dizer se tão bom ou
eficiente como quando o sexo ainda era espantoso. A filosofia geral do filme,
ou pelo menos a mais facilmente extraível, é sobre a natureza das relações
humanas. Bertolucci e seus colegas de script tentam desconstruir as bobagens
idealistas sobre os relacionamentos (encarnadas no insuportável noivo de Jeanne,
Tom) e mostrar a realidade através de uma psicologia inversa: das coisas mais
asquerosas e brutas podem sair relações mais honestas. A intimidade entre
Marlon Brando e Maria Schneider é absoluta: se, na superfície, ela sempre
parece a ponto de se esfacelar (o que acontece no final - será?), é claro que
ela é o que o filme trás de mais profundo e sincero (com Jeanne declarando Paul
como seu príncipe encantado).
Do outro lado - eu tenho que falar
sobre ele! - temos o aspirante a cineasta e grandioso pseudo-artista Tom. “Último
Tango em Paris” se equilibra perigosamente na delicada linha entre
“sensibilidade artística” e “cafonice exibicionista”, e é com Tom que ele
descamba para a segunda. O personagem é insuportável e suas ações, assim como
as de todos que interagem com ele, são claramente irreais. Pergunto-me qual
seria o título do “filme” que ele estava realizando: “O Documentário mais
Intrusivo e Desinteressante da Terra”? 3 A cena em que ele vê (e
grava) sua noiva com os vestidos do casamento, para depois sair cantarolando (e
tendo chiliques de cineasta) no meio da chuva, está entre os momentos mais
patéticos que eu já vi em um filme. Eu objetava contra essas cenas no início,
até perceber que não havia como elas serem sérias. Bertolucci está sendo
deliberadamente tosco a fim de denunciar o superficialismo romântico e, mais
além, a afetação de muitos “artistas” de sua época (como será que ele se sente
hoje?). É uma pena que eu não tenha percebido isso mais cedo, senão passaria as
cenas com a despreocupação que elas merecem.
Em contraste, temos os diálogos
pesados de Jeanne-Paul, numa relação de constantes recaídas passivo-agressivas.
Uma hora, temos Paul revelando (?) detalhes de seu passado; noutra, o vemos
sobre as costas da garota, fazendo sexo anal com uma crueza que remete ao estupro.
Jeanne sofre física e psicologicamente nas mãos de Brando tanto quanto sente
prazer, e fica no ar a questão de se este sofrimento superou o prazer no final.
Transitar entre as cenas de Tom e essas é como caminhar em uma praia rasa e de
repente afundar em um imenso declive. Ainda que o filme não seja muito sutil
nesses choques térmicos (Tom é irritante demais para que o elemento
“intencional” o redima completamente), algumas transições mostram o lado jocoso
de Bertolucci. A melhor fica com Jeanne e Paul recitando os próprios nomes como
dois animais, até que se corta para um pato grasnando no parque, onde nosso insignificante
cineasta atormenta a noiva.
Os diálogos são onde o roteiro
atinge um ponto de Iluminação. Esses, sim, são capazes de chocar e de fazer rir,
independente da época em que são assistidos. Os insultos que Paul dirige à sua
companheira são divertidíssimos, os bate-bocas entre ambos (com ele sempre
vencedor) são rápidos e espertos e as peripécias do homem rendem grandes linhas
como “comer c* de rato com maionese”.
Suas provocações escatológicas, como no fisting
que ele pede a Jeanne, essas sim são pesadas e ultrajantes. Senti pena da
garota ao vê-la confessar que, por ele, comeria m*rda de porco e depois sugaria
o ânus flatulento do animal morto. Até essa última linha foi difícil de escrever...
O que nos leva à pergunta: seria “Último
Tango em Paris” machista? Jeanne, a partir de certo ponto, parece mais uma
prisioneira em severa Síndrome de Estocolmo, o que leva ao final trágico e a
sua parcial loucura. Ela parece odiar Brando (odeia mesmo?), mas é incapaz de
se desfazer dele, e consente com suas maiores loucuras mesmo com visível
relutância. É óbvio que reduzir uma obra assim a rótulos será sempre de um
simplismo patético e ultimamente equivocado. Apesar de certos momentos difíceis
de engolir, o filme é realista (retirando o elemento de sátira de Tom, ainda
que ambos se complementem). Embora sua história sem dúvida possa ter chocado o
forte movimento feminista da época, o Séc. XXI a vê com outros olhos. Podemos
observar com mais clareza que não há nada de anormal na relação Brando-Schneider.
Em uma era onde as mulheres saíram vitoriosas (pois é, rapazes, está na hora de
jogarmos a toalha), onde elas parecem as melhores e mais qualificadas
trabalhadoras e senhoras absolutas de sua sexualidade (os homens ainda são
patinhos atrapalhados no quesito), o que o filme faz é desnudar o calcanhar de
Aquiles por trás dessa força. Sem querer entrar em teorias evolutivas, o fato é
que as mulheres sofrem mais quando encontram seu “verdadeiro” homem: aquele
senhor forte, confiante e independente (e raro) que está sempre acima das seduções
femininas. É um termo-comum não muito incorreto que essas relações terminam com
a mulher cedendo, ou pelo menos em uma posição de dependência para esse
espécime masculino tão raro. O conflito de Jeanne é o conflito de todas as
mulheres apaixonadas: não podem continuar com um homem tão instável, mas não
querem largar o que talvez seja a única fonte de sincero prazer e aventura que terão
na vida.
O mundo está cheio de Jean-Pierre’s
e de pouquíssimos Marlon Brando’s. E não há nada pior para uma mulher do que
perder o aventureiro bad boy para
insípido cara legal.
E vamos logo dedicar ao diretor o
seu merecido parágrafo: Bertolucci existe para nos lembrar da diferença entre
uma ótima direção e uma genial. Os melhores momentos do filme são quando a câmera
do diretor passeia pelos cenários, construindo um espetáculo sempre
imprevisível. Muitas são as horas de silêncio, puramente visuais, e o diretor
as conduz com destreza hipnótica e foco violento: veja quando Paul se retira do
quarto da mãe de sua ex-mulher após a violenta discussão. Segue-se um ritual de
sombras sincronizado por um tenso abrir e fechar de portas. O melhor de Bertolucci
é visto quando Paul e a dita mãe estão frente a frente, sérios e tensos. A
câmera executa um zoom lento que ultrapassa os personagens e foca o espaço
vazio entre eles. A discussão segue em off.
Então, a mãe caminha para o centro da tela e apenas chora. O resto é silêncio.
Tal condução de cena não é ensinada
em lugar algum: não faz parte de nenhum manual de direção nem pode ser copiada.
Ela é pura criação. Ela brinca com o irracional (ultrapassar os personagens com
o zoom) e depois choca o espectador com uma beleza construída fora de quaisquer
regras fílmicas, as quais Bertolucci faz constante questão de quebrar. Eu poderia
assistir a obra sem som algum e as imagens sozinhas ainda valeriam a
experiência. Bertolucci é louco, louco!
Numa visão geral, o filme deixa
certas coisas a desejar. As cenas de Jean-Pierre (Tom), mesmo com toda a
intencionalidade, são por vezes difíceis de engolir, assim como muitas
situações entre Paul e Jeanne (nem mesmo o magnetismo animal de Brando pode
explicar o primeiro encontro entre ambos). As reflexões sobre o tempo e as
relações sentimentais seriam mais bem aproveitadas se o roteiro não tropeçasse
vez por outra na transição entre cenas (as de Paul-Tom e amor-sexo são, muitas
vezes, choques que quebram a concentração). Não é uma obra que o irá arrebatar
de primeira vez, mas que cresce com contínua reflexão. E você irá refletir
sobre ela, se irá - esse é dos filmes que não saem da cabeça tão cedo.
NOTA:
8,0
1 Well, of course you do!
2 Bom, ele é francês, então não é de se
impressionar.
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