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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Último Tango em Paris (1972)



É estranho olhar para trás no tempo e perceber como o “Último Tango em Paris” conseguiu se meter em tamanha confusão. Seus defensores, coitados, tinham que se esforçar para conseguir voz no meio de uma multidão tão louca que parecia saída da Idade Média. Esse foi um filme que fazia, conforme relatos, damas mais sensíveis saírem vomitando e chorando das salas de cinema. Várias tentativas de censura foram levantadas em todo lugar onde era exibido; quando falhavam, multidões inteiras iam às portas das sessões em protesto e boicote. Os conservadores e religiosos o tinham como uma profanação sem limites. As feministas o consideravam uma peça ultrajante à imagem da mulher. Os críticos o atacavam como “pornografia disfarçada de arte”. Era uma bagunça!

Mas o tempo, o melhor justiceiro de todos, fez seu trabalho - e as bilheterias também. A obra mais polêmica de Bernardo Bertolucci foi um sucesso, atraindo as mesmas multidões jovens que antes tiveram o gostinho da rebeldia em filmes como “Laranja Mecânica” ou “M*A*S*H” (ainda eram anos herdeiros dos hippies, então a experimentação continuava em alta). Mas o filme não envelheceu tão bem quanto deveria, pelo menos em seu aspecto chocante. Embora quase todo mundo ligue seu título a propriedades não-culinárias da manteiga, poucos são os que de fato viram a cena. “Último Tango em Paris” entrou para a vasta categoria de filmes que todos dizem conhecer, mas que só poucos viram.

Sua ferocidade sexual é o elemento que definitivamente não envelheceu bem. Se o filme é um “pornô-arte”, tornou-se um pornô soft: em quase nenhuma das cenas de sexo vemos os dois personagens nus. Quando estão, são em momentos de linda intimidade, nos quais a arte de Bertolucci funciona maravilhosamente. Os atos em si são poucos e rápidos, e memoráveis não pelo sexo, mas pelo tratamento bizarro que o roteiro lhes dá (falaremos disso adiante). Desconfio que nenhum espectador moderno veja nessas cenas o ultraje que os cidadãos dos anos 70 viram. Se “fator-choque” era importante para a obra, hoje ele se perdeu diante da insensibilização da sociedade perante o sexo. As maiores perversões de Brando com Schneider podem ser vistas sem problemas nas categorias mais leves de certos sites na internet (if you know what I mean)1.

O bom é que o impacto do sexo não é tão importante como os exagerados “setentistas” diziam. Se o tempo corroeu esta camada mais frágil, seu firme lado atemporal continua a impressionar. Talvez tenha até ganho um novo significado, embora eu não saiba dizer se tão bom ou eficiente como quando o sexo ainda era espantoso. A filosofia geral do filme, ou pelo menos a mais facilmente extraível, é sobre a natureza das relações humanas. Bertolucci e seus colegas de script tentam desconstruir as bobagens idealistas sobre os relacionamentos (encarnadas no insuportável noivo de Jeanne, Tom) e mostrar a realidade através de uma psicologia inversa: das coisas mais asquerosas e brutas podem sair relações mais honestas. A intimidade entre Marlon Brando e Maria Schneider é absoluta: se, na superfície, ela sempre parece a ponto de se esfacelar (o que acontece no final - será?), é claro que ela é o que o filme trás de mais profundo e sincero (com Jeanne declarando Paul como seu príncipe encantado).

Do outro lado - eu tenho que falar sobre ele! - temos o aspirante a cineasta e grandioso pseudo-artista Tom. “Último Tango em Paris” se equilibra perigosamente na delicada linha entre “sensibilidade artística” e “cafonice exibicionista”, e é com Tom que ele descamba para a segunda. O personagem é insuportável e suas ações, assim como as de todos que interagem com ele, são claramente irreais. Pergunto-me qual seria o título do “filme” que ele estava realizando: “O Documentário mais Intrusivo e Desinteressante da Terra”? 3 A cena em que ele vê (e grava) sua noiva com os vestidos do casamento, para depois sair cantarolando (e tendo chiliques de cineasta) no meio da chuva, está entre os momentos mais patéticos que eu já vi em um filme. Eu objetava contra essas cenas no início, até perceber que não havia como elas serem sérias. Bertolucci está sendo deliberadamente tosco a fim de denunciar o superficialismo romântico e, mais além, a afetação de muitos “artistas” de sua época (como será que ele se sente hoje?). É uma pena que eu não tenha percebido isso mais cedo, senão passaria as cenas com a despreocupação que elas merecem.

Em contraste, temos os diálogos pesados de Jeanne-Paul, numa relação de constantes recaídas passivo-agressivas. Uma hora, temos Paul revelando (?) detalhes de seu passado; noutra, o vemos sobre as costas da garota, fazendo sexo anal com uma crueza que remete ao estupro. Jeanne sofre física e psicologicamente nas mãos de Brando tanto quanto sente prazer, e fica no ar a questão de se este sofrimento superou o prazer no final. Transitar entre as cenas de Tom e essas é como caminhar em uma praia rasa e de repente afundar em um imenso declive. Ainda que o filme não seja muito sutil nesses choques térmicos (Tom é irritante demais para que o elemento “intencional” o redima completamente), algumas transições mostram o lado jocoso de Bertolucci. A melhor fica com Jeanne e Paul recitando os próprios nomes como dois animais, até que se corta para um pato grasnando no parque, onde nosso insignificante cineasta atormenta a noiva.

Os diálogos são onde o roteiro atinge um ponto de Iluminação. Esses, sim, são capazes de chocar e de fazer rir, independente da época em que são assistidos. Os insultos que Paul dirige à sua companheira são divertidíssimos, os bate-bocas entre ambos (com ele sempre vencedor) são rápidos e espertos e as peripécias do homem rendem grandes linhas como “comer c* de rato com maionese”. Suas provocações escatológicas, como no fisting que ele pede a Jeanne, essas sim são pesadas e ultrajantes. Senti pena da garota ao vê-la confessar que, por ele, comeria m*rda de porco e depois sugaria o ânus flatulento do animal morto. Até essa última linha foi difícil de escrever...

O que nos leva à pergunta: seria “Último Tango em Paris” machista? Jeanne, a partir de certo ponto, parece mais uma prisioneira em severa Síndrome de Estocolmo, o que leva ao final trágico e a sua parcial loucura. Ela parece odiar Brando (odeia mesmo?), mas é incapaz de se desfazer dele, e consente com suas maiores loucuras mesmo com visível relutância. É óbvio que reduzir uma obra assim a rótulos será sempre de um simplismo patético e ultimamente equivocado. Apesar de certos momentos difíceis de engolir, o filme é realista (retirando o elemento de sátira de Tom, ainda que ambos se complementem). Embora sua história sem dúvida possa ter chocado o forte movimento feminista da época, o Séc. XXI a vê com outros olhos. Podemos observar com mais clareza que não há nada de anormal na relação Brando-Schneider. Em uma era onde as mulheres saíram vitoriosas (pois é, rapazes, está na hora de jogarmos a toalha), onde elas parecem as melhores e mais qualificadas trabalhadoras e senhoras absolutas de sua sexualidade (os homens ainda são patinhos atrapalhados no quesito), o que o filme faz é desnudar o calcanhar de Aquiles por trás dessa força. Sem querer entrar em teorias evolutivas, o fato é que as mulheres sofrem mais quando encontram seu “verdadeiro” homem: aquele senhor forte, confiante e independente (e raro) que está sempre acima das seduções femininas. É um termo-comum não muito incorreto que essas relações terminam com a mulher cedendo, ou pelo menos em uma posição de dependência para esse espécime masculino tão raro. O conflito de Jeanne é o conflito de todas as mulheres apaixonadas: não podem continuar com um homem tão instável, mas não querem largar o que talvez seja a única fonte de sincero prazer e aventura que terão na vida.

O mundo está cheio de Jean-Pierre’s e de pouquíssimos Marlon Brando’s. E não há nada pior para uma mulher do que perder o aventureiro bad boy para insípido cara legal.

E vamos logo dedicar ao diretor o seu merecido parágrafo: Bertolucci existe para nos lembrar da diferença entre uma ótima direção e uma genial. Os melhores momentos do filme são quando a câmera do diretor passeia pelos cenários, construindo um espetáculo sempre imprevisível. Muitas são as horas de silêncio, puramente visuais, e o diretor as conduz com destreza hipnótica e foco violento: veja quando Paul se retira do quarto da mãe de sua ex-mulher após a violenta discussão. Segue-se um ritual de sombras sincronizado por um tenso abrir e fechar de portas. O melhor de Bertolucci é visto quando Paul e a dita mãe estão frente a frente, sérios e tensos. A câmera executa um zoom lento que ultrapassa os personagens e foca o espaço vazio entre eles. A discussão segue em off. Então, a mãe caminha para o centro da tela e apenas chora. O resto é silêncio.

Tal condução de cena não é ensinada em lugar algum: não faz parte de nenhum manual de direção nem pode ser copiada. Ela é pura criação. Ela brinca com o irracional (ultrapassar os personagens com o zoom) e depois choca o espectador com uma beleza construída fora de quaisquer regras fílmicas, as quais Bertolucci faz constante questão de quebrar. Eu poderia assistir a obra sem som algum e as imagens sozinhas ainda valeriam a experiência. Bertolucci é louco, louco!

Numa visão geral, o filme deixa certas coisas a desejar. As cenas de Jean-Pierre (Tom), mesmo com toda a intencionalidade, são por vezes difíceis de engolir, assim como muitas situações entre Paul e Jeanne (nem mesmo o magnetismo animal de Brando pode explicar o primeiro encontro entre ambos). As reflexões sobre o tempo e as relações sentimentais seriam mais bem aproveitadas se o roteiro não tropeçasse vez por outra na transição entre cenas (as de Paul-Tom e amor-sexo são, muitas vezes, choques que quebram a concentração). Não é uma obra que o irá arrebatar de primeira vez, mas que cresce com contínua reflexão. E você irá refletir sobre ela, se irá - esse é dos filmes que não saem da cabeça tão cedo.

NOTA: 8,0

1 Well, of course you do!
2 Bom, ele é francês, então não é de se impressionar.

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