Essa tem sido uma semana sem grandes filmes,
pelo menos não grandes o suficiente para me motivar a escrever sobre eles
(talvez eu redija uma coisa ou duas sobre “The
Thing”, de Carpenter). Também o meu tempo foi consumido por um pequeno
catatau de cento e cinqüenta reais que justificou cada centavo do investimento.
Eu não escrevo sobres livros e não tenho nenhuma prática em fazê-lo, mas este é
tão excepcional (e tão obrigatório para qualquer leitor) que torna a tarefa
inescapável. Além do mais, o valor de seu conteúdo é incalculável, um enorme (e
nunca exaustivo) suprimento de informações para qualquer um que lide com
política, economia, sociologia, antropologia, história, administração ou
diplomacia. Sim, estamos falando de um livro só. Essa “conquista de uma vida”
foi escrita por David S. Landes, professor de história e economia política de
Harvard e mentor do historiador popstar
Niall Ferguson (“Império”, “A Ascensão do Dinheiro”).
Do preço ao volume (é um tijolo de 593 páginas,
excluindo bibliografias e referências), “A
Riqueza e a Pobreza das Nações” aparenta ser mais uma obra tecnicista e
enfadonha cujo interesse não vai além de um reservado público acadêmico. É o
oposto. Este livro concilia o melhor dos dois mundos: a abundância de
informação dos grandes trabalhos acadêmicos e a simplicidade de escrita dos
best-sellers “cabeça”. “A Riqueza...” jamais cansa; é revigorante a cada
página, seguro em seu discurso e intencionalmente polêmico. O subtítulo (“Por
que Algumas [nações] são tão Ricas e Outras são tão Pobres”) já é do tipo que
chama para briga, principalmente em tempos onde a desigualdade social é o novo
Grande Vilão. É uma obra de ambição insensata, não só pela pergunta que propõe,
mas também até onde ela está disposta a ir para respondê-la: Landes tenta
analisar a história da humanidade (com ênfase a partir da Alta Idade Média
européia) em cada continente. O fato de o autor jamais perder a linha de
raciocínio neste panorama imenso é prova de seu sucesso.
“A Riqueza...” foge a quaisquer convenções ou
clichês com que se acostumou a tratar o tema. Na verdade, ele lhes declara
guerra. Landes se posiciona firmemente contra o multiculturalismo e o
relativismo cultural. Mais inédito ainda, ele entra para o seleto (e talvez
ameaçado de extinção) grupo de acadêmicos que defendem a visão eurocêntrica do
mundo, não no sentido dos europeus serem “humanos superiores” (como se isso
fizesse algum sentido), mas no de que os valores, processos e culturas
desenvolvidos na Europa foram o carro-chefe da história humana, principalmente
a partir da Baixa Idade Média. Landes frequentemente interrompe suas análises
para desconstruir os mitos acadêmicos construídos sobre elas. Seus inimigos
declarados são os “scholars”
(escolares), que, em sua opinião, são acadêmicos movidos por ideologias, e não por
fatos. A idéia de que devemos execrar os colonizadores europeus pelas
atrocidades cometidas contra os nativos da América? Insensata, diz ele. A
Europa só assumiu a liderança devido a uma sorte ou coincidência histórica?
Estupidez. Todas as culturas são de igual valor e possuem as mesmas
oportunidades de crescimento e influência? Uma simples análise dos fatos mostra
o contrário.
É um livro desagradável, porém, parecendo
assumir contornos deterministas. Ao término da leitura, será difícil
desvencilhar-se da impressão que europeus (protestantes, especificamente),
norte-americanos e japoneses são “programados para o sucesso”, enquanto todos
os outros parecem condenados à subsistência ou dependência. A mensagem do livro,
claro, não nada perto desse simplismo, mas essa é uma visão que fica, tanto porque
Landes dedica-se a explicar porque as coisas são do jeito que são, e não o que
podemos fazer para melhorá-las. Ao final, o autor isenta-se de uma resposta (“Faço essas perguntas não porque saiba as
respostas [só os verdadeiros crentes pretendem conhecê-las]”). Para ele, o
provável caminho do sucesso está em seguir o exemplo dos “vencedores” (sim, o
livro divide as nações atuais em vencedoras e perdedoras), o que está além de
qualquer ajuda externa ou intervenção divina. Na conclusão de Landes, apenas uma
cultura baseada no “trabalho, parcimônia,
honestidade, paciência e tenacidade” encontrará o caminho da riqueza
socioeconômica. Transcrevo um trecho:
“Algumas dessas lições podem soar como uma coleção de lugares-comuns - o
gênero de lições que se costumava aprender em casa e na escola, quando pais e
professores pensavam ter a missão de criar e educar seus filhos. Hoje,
digamo-nos condescender com tais verdades, deixamo-las de lado como
desenxabidas banalidades. Mas por que considerar obsoleta a sabedoria? Estamos
vivendo, sem dúvida, numa época de sobremesa. Queremos que as coisas sejam
doces; muitos de nós trabalhamos para viver e vivemos para sermos felizes. Não
há nada de errado nisso; só que isso não promove uma alta produtividade.
Queremos alta produtividade? Então devemos viver para trabalhar e obter a
felicidade como subproduto.”
Pgs.
592 e 593
O
autor é adepto da “cultura de cigarras”: o trabalho não só dignifica o homem
como deve ser o aspecto central de sua vida. Uma sociedade vitoriosa não é a
que apenas a que provê ótimas condições de vida aos seus cidadãos (a Grécia fez
isso e terminou arruinada), mas a que a concilia com industrialização,
empreendedorismo, criatividade e inovação. Para ler este livro, o leitor
precisa baixar um pouco o amor-próprio: há a impressão (justificada) de que a
obra “ranqueia” os tipos de culturas na “escala do sucesso”. A cultura
protestante é superior à católica, que, por sua vez, é “menos pior” do que a
islâmica. O secularismo é o ponto máximo da escala cultural, e teocracias (quaisquer
ditaduras, na verdade) estão inerentemente direcionadas ao fracasso (por
fracasso, entendamos como ruína econômica e desordem social): “Devemos cultivar uma fé cética, evitar
dogmas, ouvir e observar bem”, resume Landes.
O
dogmatismo, que resulta no popularmente conhecido termo “cabeça dura”, talvez
seja o vilão número um da humanidade e causa principal do atraso de boa parte
do globo. Associa-se a palavra usualmente com “religião”, mas seria inocência
pensar que livro tão completo se ateria somente a isso. O autor mostra que a
rigidez religiosa de locais como o Oriente Médio e Europa Mediterrânea foi
fundamental para seu atraso. Também, a cultura irascível e arredia dos
chineses, hostis a qualquer conhecimento estrangeiro, explicou sua defasagem
tecnológica em relação aos europeus, permitindo fácil dominação durante o neocolonialismo.
Mesmo os franceses perigaram cair graças ao próprio orgulho e a dificuldade de
aceitar e assimilar os triunfos de povos estrangeiros.
Outras
nações podem reverter o caminho de sucesso e cair no esquecimento e na
mediocridade. Irei destacar alguns dos melhores trechos no livro neste quesito,
começando com a queda da península ibérica. Ora, Landes concede méritos a
Portugal e Espanha por terem tido um espírito suficientemente aventureiro para
aperfeiçoar e desenvolver métodos navais pioneiros no decorrer de um século. Entretanto,
ambos os países perderam o poder (e a relevância) quase tão rápido quanto o
obtiveram. Sobre Portugal:
“Em 1497, pressões da Igreja Católica e da Espanha levaram a Coroa
portuguesa a abandonar essa tolerância [com culturas judaicas e não-católicas].
(...) O declínio foi gradual. A Inquisição portuguesa só foi instalada na
década de 1540 e o seu primeiro herege foi queimado em auto-da-fé três anos
depois; mas só se tornou sombriamente implacável na década de 1580, após a
reunião das coroas portuguesa e espanhola na pessoa de Felipe II. Nesse meio
tempo, os criptojudeus, incluindo Abraão Zacuto e outros astrônomos, acharam
que a vida em Portugal estava ficando suficientemente perigosa para justificar
a saída do país em massa. Levaram com eles dinheiro, experiência comercial,
ligações, conhecimentos e - ainda mais importante - aquelas qualidades
imensuráveis de curiosidade e inconformismo que constituem o fermento do
pensamento.”
Pgs.
146 e 147
Note-se,
aliás, que a curiosidade e o inconformismo seriam traços-chave dos
protestantes, cuja “ética do trabalho” (sim, você também ouvirá muito sobre
Weber) em países como Inglaterra, Holanda, Alemanha e, muito posteriormente,
França, se tornaria um dos grandes trunfos destas nações sobre as demais. Vejamos
agora qual o fim de Portugal:
“Tal como Espanha, os portugueses esforçaram-se ao máximo por fechar-se
a influências estrangeiras e heréticas. A educação formal era controlada pela
Igreja, que mantinha um currículo medieval concentrado na gramática, retórica e
argumentação escolástica. (...) A única ciência em nível superior seria
encontrada em Coimbra. Mesmo aí, porém, poucos professores estavam dispostos a
trocar Galeno por Harvey, ou a ensinar as ainda perigosas idéias de Copérnico,
Galileu e Newton, todos banidos pelos jesuítas ainda em 1746.
(...)
Os diplomatas e agentes
portugueses no estrangeiro regressavam ao país com a mensagem de que o resto do
mundo estava avançando, enquanto Portugal ficara parado no tempo. Esses
“estrangeirados” - seu apelido pejorativo - atraíram profundas suspeitas, pois
estavam “contaminados”. Sua rejeição estava implícita no orgulho português.
Sumamente desastroso. Eles perceberam o que poucos portugueses podiam ou
queriam ver: que a busca da pureza cristã era estúpida, que o Santo Ofício da
Inquisição era um desastre nacional; que a Igreja estava devorando a riqueza do
país; que o fracasso do governo em promover a agricultura e a indústria tinha
reduzido Portugal ao papel de “melhor e mais lucrativa colônia da Inglaterra”.
(...)
Em 1600, mais ainda em 1700,
Portugal tornara-se um país atrasado e fraco. Os cientistas, matemáticos e
físicos criptojudeus de anos idos tinham fugido todos e nenhuma voz discordante
veio ocupar o lugar deles. Em 1736, D. Luís da Cunha deplorou a ausência de uma
comunidade reformista (calvinista) em Portugal. Assinalou que o desafio
huguenote evitara que o clero francês mergulhasse no “sórdido” nível de
obscurantismo de seus confrades portugueses. Palavras muito provocadoras mas
certeiras: se os lucros de comércio de mercadorias são substanciais, eles são
pequenos quando comparados com o intercâmbio de idéias.”
Pgs.
147 a 149
Se
você sentiu alguma pontada de amargor ao ver a decadência de um país ser
descrita de maneira tão crua, prepare-se para uma viagem particularmente
desagradável: mais do que uma explicação do sucesso, “A Riqueza...” dedica
enorme tempo para entender o fracasso. Veremos como o fundamentalismo católico
levou regiões como Espanha e sul da Itália à ruína, como as teocracias islâmicas
impediram qualquer desenvolvimento científico no Oriente Médio além do
aceitável para os dogmas religiosos, como as ideologias extremistas de esquerda
e os diversos populismos antiimperialistas condenaram a América Latina a uma
industrialização desigual e trôpega e como o socialismo transformou as nações
que o adotaram, segundo o autor, nos “maiores perdedores” do período de
crescimento do Séc. XX. O próprio autor afirma que essa sensação de impotência
e decrepitude, ao observar a ascensão e decadência de tantos e promissores
povos, é uma das maiores pragas da análise histórica.
Se
o livro possui algum problema, no que tange a estilo ou argumentação, ele se
concentra nas constantes “alfinetas” que o autor faz contra os “scholars”. Embora muitas vezes elas
sirvam como contra-argumentos (portanto, produtivas ao discurso), algumas horas
elas parecem uma rixa pessoal do autor contra seus desafetos (“Quem disse que tudo é calmo na torre de
marfim do conhecimento acadêmico?”). Esses momentos chegam a parar a linha
de raciocínio e constranger o leitor, que parece envolto numa briga que não é
dele e que pouco lhe interessa. O autor não chega ao ponto de se usar de
palavras indecorosas, claro, mas sua fala fica bastante carregada. Aliás, isso
me lembra de outra qualidade sua: quando não está envolto nestas rixas, Landes
é excepcionalmente sagaz, indo da ironia ao cinismo sem perder a pose. Coisa
habitual dos grandes mestres da escrita.
Já
quanto ao conteúdo, eu não tenho nada a reclamar. “A Riqueza e a Pobreza das
Nações” é um trabalho tão intenso e detalhado que qualquer contra-argumentador
terá um trabalho titânico pela frente: um quinto do livro (167 páginas) é
dedicado apenas a referências e bibliografias. Poucos escritores sentem-se tão
confortáveis em sua área de escrita quanto o senhor Landes: lê-lo é uma
atividade enriquecedora e divertida, e seu poder de persuasão é hipnótico. Da
primeira vez que vi tal livro, julguei que se tratava de uma obra importante.
Ao terminá-lo, percebi que meu julgamento fora uma subestimação: ele é um
tesouro preciosíssimo que não pode faltar na prateleira de ninguém. Faça o
possível para tê-lo em suas mãos: esgote suas economias, venda seus pertences,
hipoteque sua casa, prostitua-se. Qualquer sacrifício é insignificante por um
prêmio desse calibre - talvez uma das melhores análises históricas já escritas
desde que Winston Churchill redefiniu o gênero.
Nenhum comentário:
Postar um comentário