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domingo, 25 de novembro de 2012

[LIVRO] A Riqueza e a Pobreza das Nações


Essa tem sido uma semana sem grandes filmes, pelo menos não grandes o suficiente para me motivar a escrever sobre eles (talvez eu redija uma coisa ou duas sobre “The Thing”, de Carpenter). Também o meu tempo foi consumido por um pequeno catatau de cento e cinqüenta reais que justificou cada centavo do investimento. Eu não escrevo sobres livros e não tenho nenhuma prática em fazê-lo, mas este é tão excepcional (e tão obrigatório para qualquer leitor) que torna a tarefa inescapável. Além do mais, o valor de seu conteúdo é incalculável, um enorme (e nunca exaustivo) suprimento de informações para qualquer um que lide com política, economia, sociologia, antropologia, história, administração ou diplomacia. Sim, estamos falando de um livro só. Essa “conquista de uma vida” foi escrita por David S. Landes, professor de história e economia política de Harvard e mentor do historiador popstar Niall Ferguson (“Império”, “A Ascensão do Dinheiro”).

Do preço ao volume (é um tijolo de 593 páginas, excluindo bibliografias e referências), “A Riqueza e a Pobreza das Nações” aparenta ser mais uma obra tecnicista e enfadonha cujo interesse não vai além de um reservado público acadêmico. É o oposto. Este livro concilia o melhor dos dois mundos: a abundância de informação dos grandes trabalhos acadêmicos e a simplicidade de escrita dos best-sellers “cabeça”. “A Riqueza...” jamais cansa; é revigorante a cada página, seguro em seu discurso e intencionalmente polêmico. O subtítulo (“Por que Algumas [nações] são tão Ricas e Outras são tão Pobres”) já é do tipo que chama para briga, principalmente em tempos onde a desigualdade social é o novo Grande Vilão. É uma obra de ambição insensata, não só pela pergunta que propõe, mas também até onde ela está disposta a ir para respondê-la: Landes tenta analisar a história da humanidade (com ênfase a partir da Alta Idade Média européia) em cada continente. O fato de o autor jamais perder a linha de raciocínio neste panorama imenso é prova de seu sucesso.

“A Riqueza...” foge a quaisquer convenções ou clichês com que se acostumou a tratar o tema. Na verdade, ele lhes declara guerra. Landes se posiciona firmemente contra o multiculturalismo e o relativismo cultural. Mais inédito ainda, ele entra para o seleto (e talvez ameaçado de extinção) grupo de acadêmicos que defendem a visão eurocêntrica do mundo, não no sentido dos europeus serem “humanos superiores” (como se isso fizesse algum sentido), mas no de que os valores, processos e culturas desenvolvidos na Europa foram o carro-chefe da história humana, principalmente a partir da Baixa Idade Média. Landes frequentemente interrompe suas análises para desconstruir os mitos acadêmicos construídos sobre elas. Seus inimigos declarados são os “scholars” (escolares), que, em sua opinião, são acadêmicos movidos por ideologias, e não por fatos. A idéia de que devemos execrar os colonizadores europeus pelas atrocidades cometidas contra os nativos da América? Insensata, diz ele. A Europa só assumiu a liderança devido a uma sorte ou coincidência histórica? Estupidez. Todas as culturas são de igual valor e possuem as mesmas oportunidades de crescimento e influência? Uma simples análise dos fatos mostra o contrário.

É um livro desagradável, porém, parecendo assumir contornos deterministas. Ao término da leitura, será difícil desvencilhar-se da impressão que europeus (protestantes, especificamente), norte-americanos e japoneses são “programados para o sucesso”, enquanto todos os outros parecem condenados à subsistência ou dependência. A mensagem do livro, claro, não nada perto desse simplismo, mas essa é uma visão que fica, tanto porque Landes dedica-se a explicar porque as coisas são do jeito que são, e não o que podemos fazer para melhorá-las. Ao final, o autor isenta-se de uma resposta (“Faço essas perguntas não porque saiba as respostas [só os verdadeiros crentes pretendem conhecê-las]”). Para ele, o provável caminho do sucesso está em seguir o exemplo dos “vencedores” (sim, o livro divide as nações atuais em vencedoras e perdedoras), o que está além de qualquer ajuda externa ou intervenção divina. Na conclusão de Landes, apenas uma cultura baseada no “trabalho, parcimônia, honestidade, paciência e tenacidade” encontrará o caminho da riqueza socioeconômica. Transcrevo um trecho:

“Algumas dessas lições podem soar como uma coleção de lugares-comuns - o gênero de lições que se costumava aprender em casa e na escola, quando pais e professores pensavam ter a missão de criar e educar seus filhos. Hoje, digamo-nos condescender com tais verdades, deixamo-las de lado como desenxabidas banalidades. Mas por que considerar obsoleta a sabedoria? Estamos vivendo, sem dúvida, numa época de sobremesa. Queremos que as coisas sejam doces; muitos de nós trabalhamos para viver e vivemos para sermos felizes. Não há nada de errado nisso; só que isso não promove uma alta produtividade. Queremos alta produtividade? Então devemos viver para trabalhar e obter a felicidade como subproduto.”
Pgs. 592 e 593

O autor é adepto da “cultura de cigarras”: o trabalho não só dignifica o homem como deve ser o aspecto central de sua vida. Uma sociedade vitoriosa não é a que apenas a que provê ótimas condições de vida aos seus cidadãos (a Grécia fez isso e terminou arruinada), mas a que a concilia com industrialização, empreendedorismo, criatividade e inovação. Para ler este livro, o leitor precisa baixar um pouco o amor-próprio: há a impressão (justificada) de que a obra “ranqueia” os tipos de culturas na “escala do sucesso”. A cultura protestante é superior à católica, que, por sua vez, é “menos pior” do que a islâmica. O secularismo é o ponto máximo da escala cultural, e teocracias (quaisquer ditaduras, na verdade) estão inerentemente direcionadas ao fracasso (por fracasso, entendamos como ruína econômica e desordem social): “Devemos cultivar uma fé cética, evitar dogmas, ouvir e observar bem”, resume Landes.

O dogmatismo, que resulta no popularmente conhecido termo “cabeça dura”, talvez seja o vilão número um da humanidade e causa principal do atraso de boa parte do globo. Associa-se a palavra usualmente com “religião”, mas seria inocência pensar que livro tão completo se ateria somente a isso. O autor mostra que a rigidez religiosa de locais como o Oriente Médio e Europa Mediterrânea foi fundamental para seu atraso. Também, a cultura irascível e arredia dos chineses, hostis a qualquer conhecimento estrangeiro, explicou sua defasagem tecnológica em relação aos europeus, permitindo fácil dominação durante o neocolonialismo. Mesmo os franceses perigaram cair graças ao próprio orgulho e a dificuldade de aceitar e assimilar os triunfos de povos estrangeiros.

Outras nações podem reverter o caminho de sucesso e cair no esquecimento e na mediocridade. Irei destacar alguns dos melhores trechos no livro neste quesito, começando com a queda da península ibérica. Ora, Landes concede méritos a Portugal e Espanha por terem tido um espírito suficientemente aventureiro para aperfeiçoar e desenvolver métodos navais pioneiros no decorrer de um século. Entretanto, ambos os países perderam o poder (e a relevância) quase tão rápido quanto o obtiveram. Sobre Portugal:

“Em 1497, pressões da Igreja Católica e da Espanha levaram a Coroa portuguesa a abandonar essa tolerância [com culturas judaicas e não-católicas]. (...) O declínio foi gradual. A Inquisição portuguesa só foi instalada na década de 1540 e o seu primeiro herege foi queimado em auto-da-fé três anos depois; mas só se tornou sombriamente implacável na década de 1580, após a reunião das coroas portuguesa e espanhola na pessoa de Felipe II. Nesse meio tempo, os criptojudeus, incluindo Abraão Zacuto e outros astrônomos, acharam que a vida em Portugal estava ficando suficientemente perigosa para justificar a saída do país em massa. Levaram com eles dinheiro, experiência comercial, ligações, conhecimentos e - ainda mais importante - aquelas qualidades imensuráveis de curiosidade e inconformismo que constituem o fermento do pensamento.”
Pgs. 146 e 147

Note-se, aliás, que a curiosidade e o inconformismo seriam traços-chave dos protestantes, cuja “ética do trabalho” (sim, você também ouvirá muito sobre Weber) em países como Inglaterra, Holanda, Alemanha e, muito posteriormente, França, se tornaria um dos grandes trunfos destas nações sobre as demais. Vejamos agora qual o fim de Portugal:

“Tal como Espanha, os portugueses esforçaram-se ao máximo por fechar-se a influências estrangeiras e heréticas. A educação formal era controlada pela Igreja, que mantinha um currículo medieval concentrado na gramática, retórica e argumentação escolástica. (...) A única ciência em nível superior seria encontrada em Coimbra. Mesmo aí, porém, poucos professores estavam dispostos a trocar Galeno por Harvey, ou a ensinar as ainda perigosas idéias de Copérnico, Galileu e Newton, todos banidos pelos jesuítas ainda em 1746.
(...)
      Os diplomatas e agentes portugueses no estrangeiro regressavam ao país com a mensagem de que o resto do mundo estava avançando, enquanto Portugal ficara parado no tempo. Esses “estrangeirados” - seu apelido pejorativo - atraíram profundas suspeitas, pois estavam “contaminados”. Sua rejeição estava implícita no orgulho português. Sumamente desastroso. Eles perceberam o que poucos portugueses podiam ou queriam ver: que a busca da pureza cristã era estúpida, que o Santo Ofício da Inquisição era um desastre nacional; que a Igreja estava devorando a riqueza do país; que o fracasso do governo em promover a agricultura e a indústria tinha reduzido Portugal ao papel de “melhor e mais lucrativa colônia da Inglaterra”.
(...)
      Em 1600, mais ainda em 1700, Portugal tornara-se um país atrasado e fraco. Os cientistas, matemáticos e físicos criptojudeus de anos idos tinham fugido todos e nenhuma voz discordante veio ocupar o lugar deles. Em 1736, D. Luís da Cunha deplorou a ausência de uma comunidade reformista (calvinista) em Portugal. Assinalou que o desafio huguenote evitara que o clero francês mergulhasse no “sórdido” nível de obscurantismo de seus confrades portugueses. Palavras muito provocadoras mas certeiras: se os lucros de comércio de mercadorias são substanciais, eles são pequenos quando comparados com o intercâmbio de idéias.”
Pgs. 147 a 149

Se você sentiu alguma pontada de amargor ao ver a decadência de um país ser descrita de maneira tão crua, prepare-se para uma viagem particularmente desagradável: mais do que uma explicação do sucesso, “A Riqueza...” dedica enorme tempo para entender o fracasso. Veremos como o fundamentalismo católico levou regiões como Espanha e sul da Itália à ruína, como as teocracias islâmicas impediram qualquer desenvolvimento científico no Oriente Médio além do aceitável para os dogmas religiosos, como as ideologias extremistas de esquerda e os diversos populismos antiimperialistas condenaram a América Latina a uma industrialização desigual e trôpega e como o socialismo transformou as nações que o adotaram, segundo o autor, nos “maiores perdedores” do período de crescimento do Séc. XX. O próprio autor afirma que essa sensação de impotência e decrepitude, ao observar a ascensão e decadência de tantos e promissores povos, é uma das maiores pragas da análise histórica.

Se o livro possui algum problema, no que tange a estilo ou argumentação, ele se concentra nas constantes “alfinetas” que o autor faz contra os “scholars”. Embora muitas vezes elas sirvam como contra-argumentos (portanto, produtivas ao discurso), algumas horas elas parecem uma rixa pessoal do autor contra seus desafetos (“Quem disse que tudo é calmo na torre de marfim do conhecimento acadêmico?”). Esses momentos chegam a parar a linha de raciocínio e constranger o leitor, que parece envolto numa briga que não é dele e que pouco lhe interessa. O autor não chega ao ponto de se usar de palavras indecorosas, claro, mas sua fala fica bastante carregada. Aliás, isso me lembra de outra qualidade sua: quando não está envolto nestas rixas, Landes é excepcionalmente sagaz, indo da ironia ao cinismo sem perder a pose. Coisa habitual dos grandes mestres da escrita.

Já quanto ao conteúdo, eu não tenho nada a reclamar. “A Riqueza e a Pobreza das Nações” é um trabalho tão intenso e detalhado que qualquer contra-argumentador terá um trabalho titânico pela frente: um quinto do livro (167 páginas) é dedicado apenas a referências e bibliografias. Poucos escritores sentem-se tão confortáveis em sua área de escrita quanto o senhor Landes: lê-lo é uma atividade enriquecedora e divertida, e seu poder de persuasão é hipnótico. Da primeira vez que vi tal livro, julguei que se tratava de uma obra importante. Ao terminá-lo, percebi que meu julgamento fora uma subestimação: ele é um tesouro preciosíssimo que não pode faltar na prateleira de ninguém. Faça o possível para tê-lo em suas mãos: esgote suas economias, venda seus pertences, hipoteque sua casa, prostitua-se. Qualquer sacrifício é insignificante por um prêmio desse calibre - talvez uma das melhores análises históricas já escritas desde que Winston Churchill redefiniu o gênero.

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