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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Operação Presente (2011)



No mundo da animação, existem ao menos três grandes produtoras cuja necessidade do lucro, ainda que importante, vem depois da inovação, da vontade de criar algo significante para a Arte. São elas a norte-americana Pixar (cujo reinado de qualidade parece ter iniciado seu inevitável declínio), a japonesa Ghibli (insuperável) e a inglesa Aardman. Destes três “tecnopólos da criatividade”, a última apresenta resultados mais imprecisos e, sem dúvida, bilheterias menos generosas. Mas há um espírito genuíno de superação em todas as suas produções, mesmo nas mais malfadas. Pois bem, os negócios da Aardman sofreram um revés após terem pisado no poço de lama financeiro intitulado “Por Água Abaixo” e perdido o protetorado da DreamWorks (imagine se a Pixar tivesse perdido as bênçãos da Disney em seus primeiros anos). Após alguns anos tentando se reerguer financeiramente, os esforçados herdeiros de Peter Lord e Nick Park se aventuraram novamente, com as graças da Sony Pictures Animation, na animação CGI (contra a tradição stop motion da empresa) e, como resultado, construíram o mais novo clássico natalino e talvez o melhor desde “O Estranho Mundo de Jack”.

Não que a qualidade, mais uma vez, tenha apresentado bilheteria proporcional. “Operação Presente” sofreu com um marketing doloroso (seu primeiro teaser vendia a batidíssima idéia de uma revisitação moderna do Natal) e colheu lucros aguados. Na verdade, este talvez seja um dos filmes de Natal mais esnobados e desconhecidos das últimas décadas (e olha que a lista é particularmente longa) – eu mesmo só o assisti um Natal DEPOIS de seu lançamento – tudo por causa da sofrível divulgaçãom que passa a idéia de mais um filme natalino de segunda. Aprendam, crianças: marketing importa.

A verdade que poucos, infelizmente, sabem é que “Operação Presente” é o melhor, mais complexo e profundo filme da Aardman, rivalizando com a Pixar em seus melhores dias e aspirando de tal modo à delicadeza e simplicidade ghiblianas que mesmo Miyazaki balançaria a cabeça em satisfeita aprovação. Sim, ele é muito bom. Impressiona-me como a Aardman finalmente aprimora o seu (finíssimo) humor descompromissado e produz um filme tão reflexivo quanto ousado, atacando temas que valem longas discussões sérias entre os adultos. O setup parece batido, construído sobre mais uma explicação de como o Papai-Noel consegue entregar presentes para duas bilhões de crianças em uma noite. E, sim, a explicação é igualmente clichê: ele é um Papai-Noel moderno, com todo tipo de aparato tecnológico possível para realizar a (ainda impossível) tarefa.

Fiquemos apenas neste aspecto raso. Embora a Aardman não comece com nada de novo, não consigo me lembrar de filme algum que executou um conceito tão brilhantemente como “Operação Natal”. As operações natalinas do Pólo-Norte não são apenas uma seqüência incompreensível de exibicionismos tecnológicos, como se os produtores jogassem uma porção de entulhos high-tech na tela e se dessem por satisfeitos (“olhem, crianças, é um Natal moderno e tecnológico, ho, ho, ho!”). O ambiente não é apenas um pano de fundo; é o coração ao redor do qual todos os elementos do roteiro são erguidos. Além do claro efeito humorístico nonsense, o resultado é um espetáculo visual que fascina e intriga. Há uma incrível plausibilidade em toda a grande operação natalina do filme, mesmo que, no fundo, a missão continue sendo impraticável (quero ver como eles fazem para distribuir presentes em uma cidade como Chicago ou nas favelas de São Paulo). A atenção aos detalhes sempre foi um imperativo na Aardman, e aqui ela está presente na construção e no funcionamento do imenso Trenó-Espacial (o S-I, uma versão vermelho-escarlate da Enterprise), na base de operações dos elfos (impressionam as dimensões do cenário), nos gadgets dos mesmos e nos processos em que eles, fazendo o agente Ethan Hunt parecer uma garotinha despreparada, entregam os presentes sem serem notados. Nas habilidosas mãos destes cineastas ingleses, voltam a ser hilárias as interpretações “tecno-modernosas” de alguns mitos natalinos (os elfos têm um termo militar para tudo – por exemplo, uma criança que acorda no momento de uma entrega é um “Waker”) ou as mais realista de outros (o trenó original, Eve – uma mistura perfeita entre modernidade e tradição).1

Quem dera que isso fosse tudo que o filme pudesse oferecer. Quem dera mesmo, pois não é fácil resumir a surpreendente complexidade de sua história, que escala até o ponto de ser uma das mais completas e honestas reflexões “filosóficas” sobre a era contemporânea. Ok, vamos por partes: tudo começa quando, após mais uma operação “bem-sucedida”, descobre-se que um dos presentes foi esquecido – o único esquecimento no meio de dois bilhões. Isso gera um impasse na “cúpula Noel”: o Papai oficial, um velhinho desajeitado de 70 anos, é inseguro e fica conflitado entre o dever de entregar o presente e a praticidade da operação. Steve, seu provável e militaresco sucessor, segue a última interpretação e se recusa a reiniciar as operações apenas por um mísero presente. Arthur, o pária desastrado da família, é o único que defende a entrega, mas seus apelos caem em ouvidos surdos – exceto nos do Vovô Noel, o antecessor de 136 anos do atual Papai Noel, que concorda em entregar o presente apenas para rever seus dias de glória e provar que seu método de entregas (tradicional, “casa por casa”) é o mais correto.

“Operação Presente” parece uma forte crítica contra o cinismo, o utilitarismo e perfeccionismo mecanicista modernos. Nele, as operações natalinas se transformaram em uma obrigação industrial tão incontestável que, quando as pessoas não se rendem a ela a contragosto (o Papai Noel), ou são velhas resmungonas que só vivem cantando as glórias dos “tempos de outrora” (Vôvo Noel) ou são simplesmente irrelevantes (Arthur). O representante supremo desta nova ordem é Steve, o militar ultra-eficiente sem o menor tato com crianças e que jamais se refere a elas pelo nome, mas pelo seus “códigos de entrega” (irônico para quem aspira a ser Papai Noel). Inúmeras vezes o “espírito de Natal” é zombado no filme (“Arthur, o Natal não é uma época de emoção!” / “Se todos nós vivêssemos pelo espírito de Natal, seria o caos!”) – afinal, essas ideologias não são produtivas – e o mais chocante (isso mesmo, chocante) é como quase todos os personagens tratam as crianças como meros números. É constante o argumento de que uma criança é insignificante demais para causar alarde, ou que o problema pode ser facilmente resolvido em “questão de dias” (ao custo, mais uma vez, da magia do Natal, bem como dos sentimentos da mesma). Por trás do humor, é incrível a cena em que o elfo-ajudante de Steve justifica ignorarem a criança pelo “percentual de eficiência da missão”, que só seria danificado em 0,00000001514834% (tive que repetir o trecho quatro vezes para entender o número). A perda do valor humano em face à sua “quantificação” é um tema antigo e dolorosamente atual – o mais recente exemplo, e o primeiro que me veio à cabeça, foi o resenhado pelo crítico de cinema Pablo Villaça sobre o tiroteio na sessão de “O Cavaleiro das Trevas Ressurge” (clique aqui para ler).

Contra todos estes ditados modernos se ergue o Vovô Noel, mas não de forma saudável. Apesar de sua personalidade irresistível (ele é um “velhinho radical” feito de maneira certa), seu discurso é aquele mesmo de tantos da ala mais extrema (e brega) do conservadorismo: tecnologia é uma besteira e tudo feito no seu tempo (à moda antiga) é melhor. Assim como Steve, ele é cego e egoísta (ou cego pelo egoísmo?), resolvendo ajudar Arthur apenas para provar seu ponto. Filmes menores sempre caem em extremos quanto à moralidade, demonizando ou um ou o outro lado da moeda. Seria fácil para “Operação Presente” desprezar a tecnologia e ter Vovô Noel como herói (e, até boa parte do primeiro ato, é o que parece), mas ele mostra o quanto o apego ao passado pode ser danoso, visto que quase toda a confusão em que Arthur se mete é graças à insistência do Vovô em guiar o trenó com uma tecnologia ultrapassada (o que também rende “esquetes” hilárias, como Arthur “se passando” por E.T. ou o grupo aterrissando em uma cidade mexicana).

Arthur, como é de se adivinhar, é o idealista boboca pelo qual ninguém dá um tostão. Ele, claro, termina como o mais correto de todos: seu idealismo, sua crença no “espírito do Natal” (interprete como uma metáfora a todos os grandes valores que já ignoramos: a dignidade humana, a bondade, a compaixão, etc.) e sua lealdade inquebrável aos princípios lembram-me da devoção do robozinho Wall-E a Eva. É absurda a quantidade de problemas que ele enfrenta apenas para entregar um presente a uma mísera criança! Tudo chega a um ponto tão crítico (pode ser engraçado, mas se o filme não fosse comédia, seria desesperador) que somos tentados a pensar por que ele simplesmente não ignora a criança. Afinal, é só uma criança! Ele chega a (literalmente) pôr a ordem global em risco apenas por ela! Arthur talvez seja muito coração para pouco cérebro – e é por isso que ele equilibra bem uma balança já tão pendida para a frieza e o calculismo.

A gradação dos problemas de Arthur, de um simples presente esquecido até o pânico global, lembrou-me do ato final de “O Estranho Mundo de Jack”. É tudo tão louco e propositalmente over-the-top (como uma incrivelmente similar cena onde militares tentam abater o trenó alado) que arranca o fôlego do espectador. A montagem do filme, por mais delicada que seja sua mensagem, é ligeira e chega a alternar entre três ou quatro cenas simultâneas com a velocidade de um filme de ação em fast foward. É claro que ele sabe quando ficar quieto quando precisa (a longa seqüência em que Arthur perde momentaneamente a fé no Natal é linda, assim como a entrega final do presente), mas quando apressa o ritmo, é uma jornada gloriosa que ninguém consegue (nem deseja) frear.

Igualmente ágil é o timing cômico. Que posso dizer? Embora não seja uma torrente infinita de humor (“South Park: Maior, Melhor e Sem Cortes”), ele me fez me contorcer em risos com suas sacadas brilhantes (a cena entre Steve e um menininho mexicano vale ouro). Como sempre, o destaque vai para os figurantes. Quem conhece a Aardman sabe que, quando se trata de humor, o melhor do bolo quase sempre vem dos figurantes: em “Wallace & Grommit: A Batalha dos Vegetais”, eram os coelhinhos; em “Por Água Abaixo”, eram as lesminhas (“Tristeee / é tão tristeee / quando não existeee / nenhum amooor, OOOOOR!”). Aqui, são os elfos: eles são hiperativos, workaholics, paranóicos e falam com vozes fininhas e agitadas. 2 Pronto! As piadas praticamente se escrevem sozinhas!

Como disse, “Operação Presente” eleva o humor da Aardman a um novo nível. Por trás da obviamente ridícula situação jaz uma mensagem tão cativante que, do segundo ato adiante, o espectador passará o tempo inteiro com lágrimas nos olhos. Este é um filme impiedosamente bonito; é sua missão declarada dobrar o coração do mais cético dos homens (“Natal?! Pff! Data ridícula!”) e fazer com que toda a audiência saia da sala engrandecida e levitando de felicidade. Este efeito só é conseguido, repito, pela dimensão de sua moral. A história também abarca como elemento central o conflito familiar: Arthur, Steve, Papai e Vovô Noéis (?), todos estão em conflito, e a maneira com que “Operação Presente” consegue dar-lhes todos um final feliz é brilhante, pura e simplesmente. De novo: acho notável como a produção desvia de armadilhas em que tantos outros filmes menores cairiam, como a tentação de fazer de um dos familiares um vilão (Steve, pela inveja, ou Vovô Noel, por suas convicções quase autoritárias).

Claro, ele é tudo menos livre de defeitos. Um particularmente grave envolve uma quebra de lógica bem simples: no primeiro ato, Steve usa como justificativa para não entregar o presente em sua “super nave” o fato de que ela voou demais e pode falhar; entretanto, poucas horas depois, ele voa com ela por um trecho ainda maior (ele erra o caminho) sem apresentar o menor contratempo. Achei sagaz como o roteiro não ignora as trapalhadas de Arthur e Vovô Noel no trenó “Eve”, mostrando que elas foram notadas pelos sistemas de segurança do mundo todo e causam alarde geral. Entretanto, o mesmo cuidado se esvai quando o super trenó sobrevoa por uma cidade inteira para bloquear-lhe o Sol, não sendo notado nem pelos militares que vigiavam intensivamente a área. Também, o filme parece comprar mais briga do que pode manejar: algumas situações se tornam tão impossíveis que a única solução para dar seguimento à história é o deus ex machina (como a improvável cena de Arthur & Cia. no meio do oceano Atlântico), o que quebra a fluidez do roteiro.

Como todo filme natalino, “Operação Presente” é uma exaltação da bondade e uma obra feliz por natureza. É em sua moral, seu humor e sua ousadia que ele se destaca dos demais incontáveis exemplares do gênero. Não tivesse a Aardman (novamente) baixado o nível com o pouquíssimo excepcional “Piratas Pirados!” (sério, Brasil, que raio de título é esse?!)3, “Operação...” seria o indicador de uma nova era de altíssima qualidade narrativa e técnica na empresa (aliás, a arte da animação é impecável: note como a textura dos personagens, e a dos elfos em especial, faz com que eles pareçam feitos de porcelana). Aqueles que não saírem com lágrimas nos olhos quando subirem os créditos (feitos, ironicamente, num estilo rápido e pouco emotivo) ao menos experimentarão uma intensa, ainda que momentânea, leveza de espírito.

NOTA: 9,0

1 Céus, a primeira fala do filme já dá uma idéia do tom cândido, mas bizarro, que encontraremos pela frente: “Querido Papai Noel, se o senhor vive mesmo no Pólo Norte, como é que eu nunca encontro sua casa quando procuro no Google Earth?”;
2 Usualmente, essa seria a fórmula para personagens muito irritantes. Mas confie na Aardman – ela sabe o que faz;
3 Não que o original – “Pirates! In an Adventure with Scientists” – fosse muito melhor, mas pelo menos não se ancorava em um trocadilho barato.

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