No mundo da
animação, existem ao menos três grandes produtoras cuja necessidade do lucro,
ainda que importante, vem depois da inovação, da vontade de criar algo
significante para a Arte. São elas a norte-americana Pixar (cujo reinado de
qualidade parece ter iniciado seu inevitável declínio), a japonesa Ghibli (insuperável)
e a inglesa Aardman. Destes três “tecnopólos da criatividade”, a última
apresenta resultados mais imprecisos e, sem dúvida, bilheterias menos
generosas. Mas há um espírito genuíno de superação em todas as suas produções,
mesmo nas mais malfadas. Pois bem, os negócios da Aardman sofreram um revés
após terem pisado no poço de lama financeiro intitulado “Por Água Abaixo” e
perdido o protetorado da DreamWorks (imagine se a Pixar tivesse perdido as
bênçãos da Disney em seus primeiros anos). Após alguns anos tentando se
reerguer financeiramente, os esforçados herdeiros de Peter Lord e Nick Park se
aventuraram novamente, com as graças da Sony Pictures Animation, na animação CGI
(contra a tradição stop motion da empresa)
e, como resultado, construíram o mais novo clássico natalino e talvez o melhor
desde “O Estranho Mundo de Jack”.
Não que a
qualidade, mais uma vez, tenha apresentado bilheteria proporcional. “Operação
Presente” sofreu com um marketing doloroso (seu primeiro teaser vendia a batidíssima idéia de uma revisitação moderna do Natal)
e colheu lucros aguados. Na verdade, este talvez seja um dos filmes de Natal
mais esnobados e desconhecidos das últimas décadas (e olha que a lista é
particularmente longa) – eu mesmo só o assisti um Natal DEPOIS de seu
lançamento – tudo por causa da sofrível divulgaçãom que passa a idéia de mais
um filme natalino de segunda. Aprendam, crianças: marketing importa.
A verdade que
poucos, infelizmente, sabem é que “Operação Presente” é o melhor, mais complexo
e profundo filme da Aardman, rivalizando com a Pixar em seus melhores dias e
aspirando de tal modo à delicadeza e simplicidade ghiblianas que mesmo Miyazaki
balançaria a cabeça em satisfeita aprovação. Sim, ele é muito bom. Impressiona-me
como a Aardman finalmente aprimora o seu (finíssimo) humor descompromissado e
produz um filme tão reflexivo quanto ousado, atacando temas que valem longas
discussões sérias entre os adultos. O setup
parece batido, construído sobre mais uma explicação de como o Papai-Noel
consegue entregar presentes para duas bilhões de crianças em uma noite. E, sim,
a explicação é igualmente clichê: ele é um Papai-Noel moderno, com todo tipo de
aparato tecnológico possível para realizar a (ainda impossível) tarefa.
Fiquemos apenas
neste aspecto raso. Embora a Aardman não comece com nada de novo, não consigo
me lembrar de filme algum que executou um conceito tão brilhantemente como
“Operação Natal”. As operações natalinas do Pólo-Norte não são apenas uma
seqüência incompreensível de exibicionismos tecnológicos, como se os produtores
jogassem uma porção de entulhos high-tech
na tela e se dessem por satisfeitos (“olhem,
crianças, é um Natal moderno e tecnológico, ho, ho, ho!”). O ambiente não é
apenas um pano de fundo; é o coração ao redor do qual todos os elementos do
roteiro são erguidos. Além do claro efeito humorístico nonsense, o resultado é um espetáculo visual que fascina e intriga.
Há uma incrível plausibilidade em toda a grande operação natalina do filme,
mesmo que, no fundo, a missão continue sendo impraticável (quero ver como eles
fazem para distribuir presentes em uma cidade como Chicago ou nas favelas de
São Paulo). A atenção aos detalhes sempre foi um imperativo na Aardman, e aqui
ela está presente na construção e no funcionamento do imenso Trenó-Espacial (o
S-I, uma versão vermelho-escarlate da Enterprise),
na base de operações dos elfos (impressionam as dimensões do cenário), nos gadgets dos mesmos e nos processos em
que eles, fazendo o agente Ethan Hunt parecer uma garotinha despreparada,
entregam os presentes sem serem notados. Nas habilidosas mãos destes cineastas
ingleses, voltam a ser hilárias as interpretações “tecno-modernosas” de alguns mitos
natalinos (os elfos têm um termo militar para tudo – por exemplo, uma criança
que acorda no momento de uma entrega é um “Waker”)
ou as mais realista de outros (o trenó original, Eve – uma mistura perfeita
entre modernidade e tradição).1
Quem dera que
isso fosse tudo que o filme pudesse oferecer. Quem dera mesmo, pois não é fácil
resumir a surpreendente complexidade de sua história, que escala até o ponto de
ser uma das mais completas e honestas reflexões “filosóficas” sobre a era
contemporânea. Ok, vamos por partes: tudo começa quando, após mais uma operação
“bem-sucedida”, descobre-se que um dos presentes foi esquecido – o único
esquecimento no meio de dois bilhões. Isso gera um impasse na “cúpula Noel”: o
Papai oficial, um velhinho desajeitado de 70 anos, é inseguro e fica conflitado
entre o dever de entregar o presente e a praticidade da operação. Steve, seu
provável e militaresco sucessor, segue a última interpretação e se recusa a
reiniciar as operações apenas por um mísero presente. Arthur, o pária
desastrado da família, é o único que defende a entrega, mas seus apelos caem em
ouvidos surdos – exceto nos do Vovô Noel, o antecessor de 136 anos do atual
Papai Noel, que concorda em entregar o presente apenas para rever seus dias de
glória e provar que seu método de entregas (tradicional, “casa por casa”) é o
mais correto.
“Operação
Presente” parece uma forte crítica contra o cinismo, o utilitarismo e
perfeccionismo mecanicista modernos. Nele, as operações natalinas se
transformaram em uma obrigação industrial tão incontestável que, quando as
pessoas não se rendem a ela a contragosto (o Papai Noel), ou são velhas
resmungonas que só vivem cantando as glórias dos “tempos de outrora” (Vôvo Noel)
ou são simplesmente irrelevantes (Arthur). O representante supremo desta nova
ordem é Steve, o militar ultra-eficiente sem o menor tato com crianças e que
jamais se refere a elas pelo nome, mas pelo seus “códigos de entrega” (irônico
para quem aspira a ser Papai Noel). Inúmeras vezes o “espírito de Natal” é
zombado no filme (“Arthur, o Natal não é
uma época de emoção!” / “Se todos nós
vivêssemos pelo espírito de Natal, seria o caos!”) – afinal, essas
ideologias não são produtivas – e o mais chocante (isso mesmo, chocante) é como
quase todos os personagens tratam as crianças como meros números. É constante o
argumento de que uma criança é insignificante demais para causar alarde, ou que
o problema pode ser facilmente resolvido em “questão de dias” (ao custo, mais
uma vez, da magia do Natal, bem como dos sentimentos da mesma). Por trás do
humor, é incrível a cena em que o elfo-ajudante de Steve justifica ignorarem a
criança pelo “percentual de eficiência da missão”, que só seria danificado em
0,00000001514834% (tive que repetir o trecho quatro vezes para entender o
número). A perda do valor humano em face à sua “quantificação” é um tema antigo
e dolorosamente atual – o mais recente exemplo, e o primeiro que me veio à
cabeça, foi o resenhado pelo crítico de cinema Pablo Villaça sobre o tiroteio
na sessão de “O Cavaleiro das Trevas Ressurge” (clique aqui para ler).
Contra todos
estes ditados modernos se ergue o Vovô Noel, mas não de forma saudável. Apesar
de sua personalidade irresistível (ele é um “velhinho radical” feito de maneira
certa), seu discurso é aquele mesmo de tantos da ala mais extrema (e brega) do
conservadorismo: tecnologia é uma besteira e tudo feito no seu tempo (à moda
antiga) é melhor. Assim como Steve, ele é cego e egoísta (ou cego pelo
egoísmo?), resolvendo ajudar Arthur apenas para provar seu ponto. Filmes
menores sempre caem em extremos quanto à moralidade, demonizando ou um ou o
outro lado da moeda. Seria fácil para “Operação Presente” desprezar a
tecnologia e ter Vovô Noel como herói (e, até boa parte do primeiro ato, é o
que parece), mas ele mostra o quanto o apego ao passado pode ser danoso, visto
que quase toda a confusão em que Arthur se mete é graças à insistência do Vovô em
guiar o trenó com uma tecnologia ultrapassada (o que também rende “esquetes”
hilárias, como Arthur “se passando” por E.T. ou o grupo aterrissando em uma
cidade mexicana).
Arthur, como
é de se adivinhar, é o idealista boboca pelo qual ninguém dá um tostão. Ele,
claro, termina como o mais correto de todos: seu idealismo, sua crença no
“espírito do Natal” (interprete como uma metáfora a todos os grandes valores
que já ignoramos: a dignidade humana, a bondade, a compaixão, etc.) e sua
lealdade inquebrável aos princípios lembram-me da devoção do robozinho Wall-E a
Eva. É absurda a quantidade de problemas que ele enfrenta apenas para entregar um presente a uma mísera criança! Tudo chega a um ponto tão crítico (pode ser
engraçado, mas se o filme não fosse comédia, seria desesperador) que somos
tentados a pensar por que ele simplesmente não ignora a criança. Afinal, é só uma criança! Ele chega a (literalmente)
pôr a ordem global em risco apenas por ela! Arthur talvez seja muito coração
para pouco cérebro – e é por isso que ele equilibra bem uma balança já tão
pendida para a frieza e o calculismo.
A gradação
dos problemas de Arthur, de um simples presente esquecido até o pânico global,
lembrou-me do ato final de “O Estranho Mundo de Jack”. É tudo tão louco e
propositalmente over-the-top (como
uma incrivelmente similar cena onde militares tentam abater o trenó alado) que
arranca o fôlego do espectador. A montagem do filme, por mais delicada que seja
sua mensagem, é ligeira e chega a alternar entre três ou quatro cenas
simultâneas com a velocidade de um filme de ação em fast foward. É claro que ele sabe quando ficar quieto quando
precisa (a longa seqüência em que Arthur perde momentaneamente a fé no Natal é
linda, assim como a entrega final do presente), mas quando apressa o ritmo, é
uma jornada gloriosa que ninguém consegue (nem deseja) frear.
Igualmente
ágil é o timing cômico. Que posso
dizer? Embora não seja uma torrente infinita de humor (“South Park: Maior,
Melhor e Sem Cortes”), ele me fez me contorcer em risos com suas sacadas
brilhantes (a cena entre Steve e um menininho mexicano vale ouro). Como sempre,
o destaque vai para os figurantes. Quem conhece a Aardman sabe que, quando se
trata de humor, o melhor do bolo quase sempre vem dos figurantes: em “Wallace
& Grommit: A Batalha dos Vegetais”, eram os coelhinhos; em “Por Água Abaixo”,
eram as lesminhas (“Tristeee / é tão
tristeee / quando não existeee / nenhum amooor, OOOOOR!”). Aqui, são os
elfos: eles são hiperativos, workaholics,
paranóicos e falam com vozes fininhas e agitadas. 2 Pronto! As
piadas praticamente se escrevem sozinhas!
Como disse,
“Operação Presente” eleva o humor da Aardman a um novo nível. Por trás da
obviamente ridícula situação jaz uma mensagem tão cativante que, do segundo ato
adiante, o espectador passará o tempo inteiro com lágrimas nos olhos. Este é um
filme impiedosamente bonito; é sua missão declarada dobrar o coração do mais
cético dos homens (“Natal?! Pff! Data
ridícula!”) e fazer com que toda a audiência saia da sala engrandecida e
levitando de felicidade. Este efeito só é conseguido, repito, pela dimensão de
sua moral. A história também abarca como elemento central o conflito familiar:
Arthur, Steve, Papai e Vovô Noéis (?), todos estão em conflito, e a maneira com
que “Operação Presente” consegue dar-lhes todos um final feliz é brilhante,
pura e simplesmente. De novo: acho notável como a produção desvia de armadilhas
em que tantos outros filmes menores cairiam, como a tentação de fazer de um dos
familiares um vilão (Steve, pela inveja, ou Vovô Noel, por suas convicções
quase autoritárias).
Claro, ele é
tudo menos livre de defeitos. Um particularmente grave envolve uma quebra de
lógica bem simples: no primeiro ato, Steve usa como justificativa para não entregar
o presente em sua “super nave” o fato de que ela voou demais e pode falhar;
entretanto, poucas horas depois, ele voa com ela por um trecho ainda maior (ele
erra o caminho) sem apresentar o menor contratempo. Achei sagaz como o roteiro
não ignora as trapalhadas de Arthur e Vovô Noel no trenó “Eve”, mostrando que
elas foram notadas pelos sistemas de segurança do mundo todo e causam alarde
geral. Entretanto, o mesmo cuidado se esvai quando o super trenó sobrevoa por
uma cidade inteira para bloquear-lhe o Sol, não sendo notado nem pelos
militares que vigiavam intensivamente a área. Também, o filme parece comprar
mais briga do que pode manejar: algumas situações se tornam tão impossíveis que
a única solução para dar seguimento à história é o deus ex machina (como a improvável cena de Arthur & Cia. no
meio do oceano Atlântico), o que quebra a fluidez do roteiro.
Como todo
filme natalino, “Operação Presente” é uma exaltação da bondade e uma obra feliz
por natureza. É em sua moral, seu humor e sua ousadia que ele se destaca dos
demais incontáveis exemplares do gênero. Não tivesse a Aardman (novamente)
baixado o nível com o pouquíssimo excepcional “Piratas Pirados!” (sério,
Brasil, que raio de título é esse?!)3, “Operação...” seria o
indicador de uma nova era de altíssima qualidade narrativa e técnica na empresa
(aliás, a arte da animação é impecável: note como a textura dos personagens, e
a dos elfos em especial, faz com que eles pareçam feitos de porcelana). Aqueles
que não saírem com lágrimas nos olhos quando subirem os créditos (feitos,
ironicamente, num estilo rápido e pouco emotivo) ao menos experimentarão uma
intensa, ainda que momentânea, leveza de espírito.
NOTA: 9,0
1 Céus, a primeira fala do filme já dá
uma idéia do tom cândido, mas bizarro, que encontraremos pela frente: “Querido Papai Noel, se o senhor vive mesmo
no Pólo Norte, como é que eu nunca encontro sua casa quando procuro no Google
Earth?”;
2 Usualmente, essa seria a fórmula para
personagens muito irritantes. Mas confie na Aardman – ela sabe o que faz;
3 Não que o original – “Pirates! In an
Adventure with Scientists” – fosse muito melhor, mas pelo menos não se ancorava
em um trocadilho barato.
Nenhum comentário:
Postar um comentário