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domingo, 30 de janeiro de 2011

Cidadão Kane (1941)

Kane, em sua (quase) vitoriosa campanha política. 


"Se o título da manchete for grande o suficiente, isso fará a notícia grande o suficiente."

Foi com essa frase acima que Charles Foster Kane ditou as novas regras de toda a indústria jornalística. Uma revolução em sua época. Uma revolução tão grande quanto o filme que se dedica a contar essa história: "Cidadão Kane". É difícil resumir a importância desta obra para o cinema: considere apenas que ela é tida como a mais importante da história cinematográfica por uma unanimidade de críticos. Um divisor de águas no cinema; o ápice da chamada "Era de Ouro de Hollywood". "Cidadão Kane" é tudo isso e muito mais! Sua história, seus personagens e sua filmografia são nada menos do que exemplos nos quais todo diretor, amador ou experiente, deveria tomar como inspiração.

Tudo começa onde o filme deveria justamente terminar: pouco antes de morrer, dentro de seu luxuoso palácio, o magnata da mídia Charles Kane pronuncia a singela palavra "Rosebud", enquanto segurava um pequeno globo de neve. Imediatamente após, ele expira. Na tentativa de descobrir o significado de tal palavra, um ousado repórter inicia uma reconstituição da vida do próprio magnata, adentrando nos bastidores da mídia norte-americana.

Antes de lançar qualquer comentário a respeito de "Cidadão Kane", deve-se conhecer seu contexto histórico: seu roteirobaseou-se na vida de William Randolph Hearst, o mítico e poderoso chefão da mídia na época, o "cidadão Kane" da realidade. O próprio, diga-se de passagem, jamais aprovou a divulgação da obra, usando todos os meios que tinha disponíveis para barrar o filme. Uma péssima estratégia, pois o mistério ao redor do filme serviu apenas para aumentar sua divulgação. Nos bastidores do filme, temos o então estreante Orson Welles, com pouco mais que 25 anos. Sua idade, que para muitos diretores foi considerada motivo de chacota, atiçou a curiosidade do público. Será que um jovem com tão pouco experiência em obras dessa magnitude seria capaz de fazer um bom filme.


O mítico castelo de Xanadu. A opulência de um castelo que, no fim das contas, é tão vazio quanto seu dono.

Muito mais do que um bom filme. O choque; a revolução; a quebra de paradigmas proposto por "Cidadão Kane" começa logo no roteiro: começar uma história por onde ela justamente deveria terminar. Da mesma forma que Machado de Assis, na literatura, revolucionou com o mesmo princípio em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", Welles inaugurou essa tendência, hoje tão explorada e rotineira, nas telonas. Essa já é uma das várias inovações do filme, e não falar delas é simplesmente ignorar toda a beleza do filme.

O filme continua quebrando fronteiras pela sua filmografia: logo no começo, o espectador faz um "passeio" até a luxuosa fortaleza particular de Kane, percorrendo os jardins e adentrando seu quarto atravessando a janela (no literal da frase). Para nós, em pleno século XXI, não há nada de anormal. Mas considere a década de 40, onde o cinema ainda tinha muito que aprender, onde as técnicas de filmagem limitavam-se a cenas contínuas, quase sem corte, como se relatassem um documentário. Só essa sequência inicial já seria o suficiente para arrancar aplausos dos espectadores. Mas essa tática não foi só uma estratégia momentânea, do tipo que seia abandonada no resto do filme. Não: toda a obra é filmada com técnicas inovadoras na época. Vejamos alguns desses trunfos: 

Pela primeira vez um filme usa, em toda a sua extensão, uma técnica conhecida como "deep focus". Nela, tanto os personagens mais perto da câmera quanto os que estão distante dela têm igual destaque na narrativa. Antes, personagens ao fundo da cena eram os figurantes, de pouco importância para a cena. Agora tudo muda: vemos dois amigos e conselheiros de Kane conversando em frente à camera em quanto o próprio Kane está ao fundo, também discutindo as questões de suas companhias. Ora, quando Kane fala, toda a atenção do público volta-se para ele. Antes, isso não era possível: só havia foco ou nos que estão perto ou nos que estão longe, nunca nos dois. "Cidadão Kane" quebrou esse tabu.


Humor negro, sátira corporativa e drama psicológico. "Cidadão Kane" é uma síntese grandiosa de vários estilos
Falemos agora da iluminação. Se algum diretor, hoje em dia, resolve-se fazer um filme propositalmente em preto e branco (que nem Spielberg em "A Lista de Schindler"), esse diretor sem dúvida deveria buscar inspiração na técnica de Welles. De aspecto gótico, mesclando feixes de luz em ambientes sombrios de modo que realce seus personagens, a película parece saltar aos olhos! Adquire um brilho próprio de modo que o espectador, até mesmo o que torce o nariz para filmes preto-e-branco, esqueceria desse mero detalhe. É como se Welles desse mais "cor" ao preto e ao branco. É uma brincadeira fantástica com as luzes, que entram em perfeita sintonia com o foco da câmera. Tudo isso usando tecnologias de 1941!

Mas a técnica mais triunfal de toda a obra é, sem duvida, sua edição. Welles coordena a transposição de imagens com tal genialidade que o filme não fica a dever em nada às obras mais modernas de hoje. Deve-se, além do mais, considerar o fato de que, na época, não havia programas de computador para edição. Nem sequer havia um computador para a tarefa! Tudo era feito quase que manualmente usando, literalmente, o improviso para conseguir a edição perfeita. Welles, de alguma forma, conseguiu que sua equipe de edição fizesse não menos que um milagre na época!

Mas o roteiro também traz suas surpresas: por ter começado o filme justamente onde deveria ser seu fim, a história deve ser narrada de trás para frente! Apesar de não ser o primeiro, "Cidadão Kane" foi o mais competente nessa técnica que hoje conhecemos por "flashback". Demais, é um flashback não-cronológico, ou seja, os fatos não são narrados necessariamente na ordem devida. Começamos, por exemplo, vendo a infância de Kane, depois pulamos para quando ele já dirige um jornal, pulando novamente para quando ele enfrenta problemas financeiros em virtude da Grande Depressão. Ora, os espaços "pulados" seriam posteriormente preenchidos por outras entrevistas do repórter em sua busca pela palavra "rosebud". E todos os flashbacks vêm acompanhados de transposições de imagem revolucionárias! Para a época (e ainda hoje), tudo isso era um deleite para a mente.

Depois de tantas inovações, parece até simplório falar das atuações. Mas até nesse aspecto o filme saiu-se magistralmente bem! Todos os atores reconstituem com perfeição a trajetória de Kane. O próprio Kane é representado por Orson Welles! Isso já é outra inovação, porque nunca antes um diretor havia assumido o papel principal e atuado por tanto tempo no filme.


O filme é dono da melhor fotografia preto-em-branco que eu já vi.
Mas que filme poderia consagrar-se um clássico sem possuir cenas que marquem ou diálogos que surpreendam? "Cidadão Kane" os tem em abundância. O filme é repleto de cenas que ficaram marcadas na história, das quais a mais memorável é o discurso político que Kane realiza em favor de sua eleição para governador. Já os diálogos, com que riqueza o filme é construído! Repletos de um humor irônico, quase toda cena possui alguma tirada de mestre. Umas das frases masi inesquecíveis, e hilárias, é a de Kane revidando as críticas de seu mentor: "Você está certo, eu perdi um milhão de dólares no ano passado com este nesgócio. Eu espero perder mais um milhão de dólares neste ano. E talvez no próximo ano. E o senhor sabe... se eu continuar perdendo um milhão de dólares por ano... terei que fechar meu empreendimento em 60 anos!".

Além de todos os triunfos, "Cidadão Kane" consegue, com perfeição, refazer a história do fictício Charles Kane. Apesar de ter possuído todo o poder que qualquer homem poderia desejar, Kane tem sua vida pessoal destruída por relações amorosas superficiais, interesses mesquinhos e pelo seu próprio orgulho ("As pessoas vão pensar aquilo que eu disser!"). Não é mais uma lição de moral batida. De fato, o filme nem dá margem de tempo para que o espectador pense nessa lição. A história é tão envolvente que só nos damos conta do horror que era a vida de Kane logo após seu fim.

Por falar em fim, a conclusão do filme é uma das mais surpreendentes já vistas: o espectador finalmente conhece o significado de "rosebud". Uma coisa tão estranhamente simples e pobre que chega até a ser chamada de "lixo" e, literalmente, queimada no final (o caro leitor só vai entender isso ao ver o filme). Esse estranho fim, essa imporvável palavra lembram o único momento em que Kane foi realmente; honestamente feliz.

"Cidadão Kane" é nada mais nada menos do que uma obra perfeita. Com todas as sutilezas necessárias de um clássico e com todas as inovações fundamentais para uma revolução, é bem provável que não presenciemos tal grandeza no cinema novamente. "Kane" é uma obra que só acontece a cada século, milênio talvez! É a síntese do cinema, do verdadeiro cinema! Uma obra, enfim, que moldou e ditou todas as futuras regras do cinema moderno, que talvez venham, num futuro incerto, a ser remodeladas, talvez. Poucas obras podem reclamar o título, mas apenas "Cidadão Kane" remete, com todas as letras, essa única palavra: imortal.


NOTA: 10  



***Selo OBRA-PRIMA*** 
O autor deste comentário considera este filme uma
verdadeira obra-prima.



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