Dogville é uma cidadezinha pacata dos EUA, situada no fim de uma estrada até as Montanhas Rochosas (o que eu lhe garanto: não é uma lona distância) em plana Grande Depressão. Quando digo “pacata”, é no mais forte sentido da palavra. Lá moram pouquíssimas pessoas com características bem marcantes, o que nos é revelado no Prólogo. O protagonista da cidade é Thomas Edison Jr. (Paul Bettany), um escritor visionário que tem como objetivo mudar Dogville. Certo dia ele escuta barulho de tiros ao longe, e, horas depois, aparece Grace (a apoteótica Nicole Kidman), uma fugitiva da máfia que tenta se esconder na cidade. Tom aceita sua estada, mas os outros morados temem a sua presença, já que os gângsteres estão à sua procura. Tom decide então fazer um trato: Grace ficaria por duas semanas; caso ela tivesse utilidade à cidade, poderia ficar, caso contrário, teria que dá meia-volta ou descer as montanhas, que, segundo ele, era improvável. Tudo parecia certo, mas Grace percebeu que, numa cidade tão pequena, não havia em que ajudar; todos já dão conta de seus serviços, mas ela decide ajudar naquilo que não precisa ser feito, e divide seu dia em fatias para os moradores. Como podemos notar, a premissa do filme é mais que simples. O ponto de partida é apenas a chegada de uma fugitiva a uma pequena cidade. Então, o que cativa tanto nessa controvérsia obra?
Já na primeira tomada, enquanto uma narração em off conduz o filme, vemos a câmera-aérea descendo até Dogville, e é aqui que está o primeiro impacto. Não existe uma cidade física. Todos os limites, de casas, ruas e afins, é desenhado no chão e com um título (“Banco das Velhas”; “Rua Elm”). Até os arbustos de Ma Ginger e o cachorro Moisés são contornos no chão. Quase não existem móveis nem artefatos, e tudo foi filmado com uma câmera de mão (guiada pelo próprio diretor) em um galpão na Suécia. O horizonte não existe. A cidade está dentro de uma caixa que, com a alteração dia-noite, muda de cor, mas isso não impede de os personagens fazerem referências ao céu. As portas, por exemplo, são imaginárias, mas os atores contracenam com ela a todo o momento – era até engraçado ver Kidman rodando uma maçaneta invisível enquanto o som da porta se abrindo ecoava. Com tudo isso, a fotorafia do filme ficou um pouco "sépia", marrom e com corres mortas. Mas qual foi o objetivo do diretor em fazer isso? Além de uma maneira revolucionária de fazer a interação ator-cenário, ele quis dar um ar teatral a tudo. O cenário é o coadjuvante; são as atuações que devem ser degustadas. Isso fez com que o filme seja ultra-radical: alguns o amam, outros o odeiam, e sua longa duração, quase 3 horas, ajuda nesse paradoxo.
O modo que o filme é conduzido vem do movimento chamado Dogma 95, idealizado pelo próprio Trier e Thomas Vinterberg. Esse manifesto foi criado de modo técnico e ético, e queria ir contra os modelos hollywoodianos que exploravam (e exploram) industrialmente o Cinema, retornando o Cinema como ele era. O manifesto contava inicialmente com dez regras. Curiosamente, Trier quebrou o “voto de castidade” em alguns pontos, como no uso de grua, iluminação artificial e objetos cenográficos, fazendo de Dogville uma obra “semi-Doma 95”.
Passadas as duas semanas de adaptação de Grace, ela se desdobra para fazer os serviços em cada casa, mas sempre com um sorriso de gratidão e de “tudo está ótimo”. Em um dia qualquer, a polícia aparece na cidade e vem com um aviso de “Desaparecida”, o que treme os alicerces de Grace na cidade. Tom, o porta-voz e “cabeça” da cidade, convoca uma reunião para confortá-los, já que Grace estava, para todos de fora, apenas desaparecida. Com o desenrolar, Tom mostra-se claramente apaixonado com Grace, e vice-versa, mas eles decidem manter o romance em segredo, que é desmascarado no dia da Independência. Nesse mesmo dia, a polícia aparece novamente e troca o cartaz de “Desaparecida” para de “Procurada”, e ainda afirma “ela é muito perigosa”. Isso fez com que Grace fosse descaradamente vista com maus olhos, mas mesmo assim ela permaneceu na cidade. E é ai que Dogville “mostra suas garras”.
Dogville estava escondendo uma perigosa fugitiva da polícia e de mafiosos. Valeria a pena abrigá-la ali, só por caprichos de Tom? Essa pergunta apoderou-se da mente de todos os moradores, que passaram a ver os serviços de Grace como insuficientes. A rotina dela dobrou, e os abusos começaram. Não só abusos psicológicos, mas abusos físicos e sexuais, já que Grace mantinha-se passível e até generosa, fazendo com que ela se tornasse uma escrava. Numa cena realmente forte, Chuck a estupra, já que a polícia voltou e, para ele, aquilo era uma forma de “pagamento” para que ele não a denunciasse. O curioso e genial desta cena é o close que Trier deu diagonalmente na cidade, mostrando o ato no fundo e todos os outros moradores sendo céticos à frente. A falta de paredes fez com que os moradores “soubessem” do que estava acontecendo, mas “ignorassem”, dando o exato ar que o diretor almejava. Particularmente, uma cena que ficará marcada da história do Cinema.
Com o passar do tempo, tudo só piorava para Grace, que decide fugir. Mas sua fuga falha, já que o motorista do caminhão, e habitante de Dogville, revela isso aos outros moradores, que decidem prende-la com uma corrente presa ao seu pescoço, igual a um cachorro. Mesmo com essa humilhação, ela não é poupada de seus inúmeros serviços e do papel de alívio sexual. Tom, compassivo com a situação, era o único que não deve Grace completamente. Numa noite ele vai até seu maltrapilho quarto, declara-se, mas ela não o quer. Então ele decide dar um “basta”, e conta aos mafiosos que Grace está escondida na cidadezinha.
A partir de agora, o rumo do filme muda. Grace é na verdade filha do mafioso, que a procurava depois de ela fugir de casa. Eles se desentendem graças aos seus modos mesquinhos e soberbos. O ritmo muda e Trier prepara o público para o final, e parece que estamos ao lado do lustroso carro do mafioso. Simbolismos tomam de conta e o mafioso é mostrado como Deus no Antigo-Testamento, o impiedoso, o cruel, o poderoso; e Grace, Jesus, aquele que foi para salvar a todos. Mas o que Dogville fez? Abusou-a. Tom vai até Grace e mostra-se arrependido, mas ela está farta de tudo. O que movia Grace em relação às pessoas – a esperança – some, e ela vai, em todos os sentidos, para o lado do pai. “O problema não é a cidade; são as pessoas. Dogville tem que sumir”, fala ela quase como um sussurro, e todos são mortos e os objetos somem, ficando somente os traços do chão, os corpos amontoados e o horizonte vermelho. O único que resta é o cachorro da cidade, Moisés.
Trier mostrou sucintamente (ou não), o horror que é a natureza humana. Mostrou os sete pecados representados em cada personagem, mostrou a intolerância, a hipocrisia, a mentira, o aproveitamento da situação, e quando Grace destrói sua piedade, um sorriso enorme apareceu no meu rosto, e a frase “eu faria o mesmo” explodiu em meu cérebro.
Então? O que é Dogville? Puro dogmatismo. Dogville é sua cidade, minha cidade, você, eu, o mundo. Até o cachorro tornou-se mais digno de viver que as pessoas. Dogville é a pessimista e realista visão crua e perfeita de nós. A “Vila do Cachorro” é a verdade absoluta, sim.
Palmas para Lars Von Trier.
Nota 10.0
Achei Dogville bem interessante no sentido da cenografia. Para os atores deve ter sido um exercício e tanto. Se fosse um pouco mais curto talvez tivesse tido melhor aceitação pelo prúblico.
ResponderExcluirhttp://acervodocinema.blogspot.com
http://memoriadasetimaarte.blogspot.com
A crítica tem um ótimo conteúdo, mas merece uma pequena revisão: onde se lê "controvérsio", por exemplo, deveria estar escrito "controvertido" ou "controverso".
ResponderExcluirGostei especialmente da maneira pessoal como o filme foi interpretado. Parabéns!
Filmaço e belo comentário!!
ResponderExcluirPalmas para Lars Von Trier...
ResponderExcluir...mas não de Ouro, depois do que aprontou em Cannes.
hahahahahaha
Falando sério agora. Não gosto do filme.