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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Não Estou Lá (2007)

EO subgênero da cinebiografia ganhou um novo exemplar quando Todd Haynes decidiu dirigir Não Estou Lá (I'm Not There, 2007). É uma obra que se debruça sobre a vida de ninguém menos que Bob Dylan, uma importante figura do mundo musical, que merece todo o respeito e consideração por suas contribuições para esse ambiente. Multifacetado, o artista impingiu no diretor uma necessidade de retratá-lo da maneira mais múltipla possível, o que se verifica desde o início de seu filme. Com isso, Hanynes transformou a experiência de seu Não Estou Lá numa viagem maravilhosa pela vida e pela obra desse homem tão fascinante.



A começar pela forma com que o elenco vive as várias fases de Dylan, o longa tem características que o tornam pouco comum entre os demais de seu tempo e de seu gênero. Para personificar as épocas distintas de sua trajetória, o diretor recrutou nada menos do que seis atores, que representam não exatamente a pessoa Bob Dylan, mas a essência de cada momento de sua carreira brilhante e profícua. Entre os nomes que se encarregam da função nada simples de dar vida e corpo ao artista estão Richard Gere, capaz de mostrar um talento muito maior que na interpretação de outros personagens. Também dá vida a ele o excelente Heath Ledger, perfeito em sua composição detalhista do cantor. E o que dizer de Cate Blanchett, que entrega uma das mais emblemáticas atuações de toda a sua carreira? Por mais lugar-comum que seja, a constatação de que ela desaparece no personagem é altamente válida. Desde que ela surge em cena, não é possível se lembrar que se trata de uma mulher dando vida a um homem.


Mas Não Estou Lá ainda tem outros elementos louváveis ao longo de suas duas horas de duração. A jornada pela vida de Bob Dylan é contada de forma não linear, o que permite que suas idas e vindas no tempo não mantenham o espectador ancorado numa visão única a respeito do artista. Haynes se utiliza muito bem desse recurso, e imprime vitalidade a um filme que não resvala para a mera rasgação de seda diante de um ídolo. São mostradas algumas passagens negativas da vida dele também. Há também uma leva mescla de ficção com documentário, em sequências nas quais nomes como Julianne Moore dão vida a personalidades importantes que tiveram contato direto com a figura inquietante do cantor. A participação da atriz no filme é quase afetiva, já que ela surge na tela como um foguete. Moore vem de parcerias anteriores com Todd Haynes, nos filmes A Salvo (Safe, 1995) e Longe do Paraíso (Far From Heaven, 2002). A oportunidade de desfrutar de seu talento é fugaz, por isso deve ser vivida intensamente nesse longa.


Aspectos fundamentais da vida de Bob são mostrados aqui, como seu autodidatismo para aprender piano e guitarra, primeiras provas de seu grande talento para a música. Seu encantamento pela folk music também é registrado, reflexo da profunda admiração que desenvolveu por Woody Guthrie, um importante nome desse movimento. A década de 60 foi a época mais intensa na carreira de Bob Dylan, já que foi quando se deram as suas maiores metamorfoses. Tudo começou mesmo em 1962, quando ele lançou o primeiro de mais de 45 álbuns, o que o levaria mais tarde a ser eleito pela revista "Rolling stone" o segundo melhor artista de todos os tempos, atrás apenas dos Beatles. Ao longo de todos esses anos, Dylan já recebeu todo tipo de rótulo, mas sempre acabou escapando deles, de uma forma ou de outra. Isso diz bastante a respeito de sua personalidade, sempre desconstruída para dar início a mais uma fase.


Haynes filma a maior parte de Não Estou Lá usando uma paleta de cores muito diversificada, mas também a abandona em certa altura, quando entra a versão de Cate Blanchett para o artista. Na verdade, cada ator que tem a função de viver Bob Dylan expressa um momento distinto de sua longa caminhada. Além disso, cada um tem um outro personagem para interpretar, o que faz do filme um constante jogo de quebra-cabeças. A linguagem é fragmentária, o que pode desagradar aos mais conservadores. Mas todas essas peculiaridades de que Haynes lança mão são absolutamente condizentes com a figura singular desse homem extraordinário. Cada fotograma da produção se assemelha a um caleidoscópio gigante, aquele brinquedinho a que somos apresentados na infância e que nos entretém tanto com sua diversidade imagética.


A metáfora se aplica com eficiência ao longa, que não se propõe uma lição de casa sobre Bob Dylan. Pelo contrário. O roteiro um tanto dotado de hermetismos passa longe da abordagem didática. Mesmo assim, para quem conhece pouco ou nada da obra de artista, é possível ter uma dimensão de sua representatividade para o âmbito musical, e também para além dele, já que sua influência se estende inclusive para a política e para o mundo das artes em geral. Essa é uma das principais características de sua obra, o diálogo com inúmeras frentes, o que a mantém com um senso de atualidade frequente e a potencializa para além de qualquer fronteira com a qual se queira delimitá-la. Por isso Haynes é tão feliz ao não optar pela unilateralidade. Depois de um filme tão sensível e delicado como Longe do Paraíso, é surpreendente ver o diretor no comando de uma obra tão desdobrável, o que só assegura sua versatilidade e talento.

Distante de parecer uma colcha de retalhos, o filme só ganha em qualidade também com sua trilha sonora fabulosa. Como não poderia deixar de ser, aliás. O músico tem uma série de canções memoráveis, que não ficaram de fora desse filme. Pode soar como pretensão uma ou outra alternativa adotada na abordagem de Todd Haynes para Não Estou Lá, mas essa é uma impressão que desaparece quando se assiste a sua visão plural desse artista tão completo. Com muita categoria, Dylan exprime um sentimento que é flagrante na modernidade, o de que somos muitos dentro de um só. Seu desdobramento em numerosas personalidades só reafirma o que, já em Fernando Pessoa se mostrava com grande veemência. Assim como o português lançou mão de seus heterônimos, numa tentativa de dar conta de seu mimetismo e de sua multiplicidade, Dylan trafega por estradas de muitas bifurcações para estabelecer pontes com vários ambientes, estações, ideias e ações.


Nota: 9/10

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