As comédias com inteligência e algo mais a dizer ganharam um grande reforço com o lançamento de Embriagado de Amor (Punch Drunk Love, 2002). O filme não é simplesmente uma coleção de situações inusitadas que vão sucedendo uma após a outra, mas sim um ótimo exercício de estilo de Paul Thomas Anderson. O jovem diretor, que tinha apenas 32 anos quando dirigiu o filme, em 2002, já havia encantado o mundo com sua estreia no celuloide, que acontecera com curtas-metragens, mas que deslanchou mesmo a partir de 1997, com Boogie Nights - Prazer Sem Limites (Boogie Nights, 1997). Ali, ele expunha o nascimento da indústria pornográfica por meio da história fictícia de um jovem que conhecia a glória e a desgraça de se viver do próprio corpo. Dois anos mais tarde, ele filmou Magnólia (Magnolia, 1999), mais um trabalho celebrado de sua curta, mas vitoriosa carreira, em que engendrou m mosaico de histórias por vezes um tanto quanto confusas, mas cuja maneira de se entrelaçar encantava o plateia. Não tardou para que seu estilo fosse comparado ao de Robert Altman, que se tornou um especialista em filmes-painel.
Mas o que se vê em Embrigado de Amor é um pouco diferentes desse paralelismo de histórias. Anderson decidiu focar quase o tempo todo em um único personagem, o frágil Barry Egan. O papel foi confiado a Adam Sandler, que se revela surpreendente ao longo do filme, o que tranquiliza a qualquer um que pudesse pensar que fosse mais um daqueles escandalosos erros de escalação, que, de fato, existem aos montes na história do cinema. Sandler se mostra muito mais contido que o habitual, acertando ao apostar numa economia gestual, que confere ao seu personagem uma certa vulnerabilidade bastante plausível. Barry Egan foi criado junto com sete irmãs, o que o fez assumir involuntariamente o posto de protetor de todas. Mas elas são muito menos dóceis do que possam parecer, e acabaram por exercer suas personalidades dominadoras sobre Barry. Isso, porém, não impediu que ele se tranformasse num sonhador, à sua maneira.
Aos poucos, dados curiosos sobre Barry começam a aparecer: ele tem um desejo bizarro de acumular milhagens aéreas, o que o leva a colecionar freneticamente os cupons de uma marca famosa de sobremesas. Com isso, chega a estocar quantidades impressionantes do produto, para ter o quanto antes o número de milhas tão desejadas. Apenas essa simples informação já denuncia o nível de carência emocional de um homem atravessado pela solidão. Barry tem pouquíssimos amigos, somado a uma grande dificuldade em cultivar suas amizades. Dean Trumbell (Philip Seymour Hoffman) é um desse poucos amigos que ainda mantém proximidade com ele. A rotina insossa de Barry só parece mudar depois de que ele conhece Lena Leonard (Emily Watson, tão rara quanto ótima nas telas). Ela surge em sua vida marcada por abusos desde a infância, os quais o deixaram resistente a paixões. A maneira abrupta com que Lena invade a vida de Barry é um dos elementos pitorescos do roteiro, também a cargo de Thomas Anderson. Aliás, todos os filmes que ele dirigiu até hoje também foram roteirizados por ele.
Na articulação do encontro quase casual entre Barry e Lena, o diretor se filia a uma estirpe de realizadores que se voltam para analisar a vida sobre o prisma do innusitado. Por sua essência, Embriagado de Amor se assemelha aos longas de Wes Anderson, como Os Excêntricos Tenembaums (The Royal Tenembaums, 2001) e A Vida Marinha com Steve Zissou (The Life Aquatic With Steve Zissou, 2004). Talvez não por acaso, os dois são xarás de sobrenome. Ambos gostam de brincar com a falta de sentido para a maioria dos fatos da vida, que nos coloca sempre em contato com situações que nos parecem ilógicas. Assim como eles, os irmãos Ethan e Joel Coen, na maioria de suas produções, gostam de espiar o aspecto surreal de nossas existências, brindando o público com um humor muitas vezes fora dos padrões esperados para uma comédia. Queime Depois de Ler (Burn After Reading, 2008), dirigido recentemente pela dupla, é um bom exemplo desse tipo de humor. Por falar em comédia, ela não é exatamente o gênero no qual Embriagado de Amor melhor se encaixa. O filme, na verdade, foge a rótulos. Minimamente, pode ser lido como um drama de tintas cômicas, mas caminha para além disso. O roteiro, com algumas falas muito bem pontuadas, contribui para despertar essa concepção da obra.
Interessante também é perceber que nem tudo o que se observa na tela necessariamente tem um significado. Nem uma significado exato, nem uma possibilidade de sentido. O filme é polissêmico, e essa riqueza de sentidos é que o torna uma opção inteligente e longe da descartabilidade da maioria de seus contemporâneos. Por outro lado, há um fio condutor atraente para a narrativa, que se desdobra em fatos até engraçados. Uma vez tendo entrado na vida de Barry, Lena fará com que ele empreenda uma viagem até o Havaí, e ainda enfrente um time de mafiosos de dar medo. Esse é o grande valor do encontro dos dois. Lena faz de Barry um homem mais seguro de si, forçando-o a lidar com seus fantasmas interiores. É mais ou menos como faz a descoberta do amor para aqueles que se cobrem de reservas e imagens pré-concebidas. O trabalho de Anderson em cima desse conceitos tão universais é minucioso e, simultaneamente, conciso, por mais que a junção desas duas características soe como um oxímoro. Os diálogos saborosos, temperados por uma trilha sonora da melhor qualidade, são a cereja do bolo que o cineasta nos preparou, por assim dizer.
Embriagado de Amor carrega consigo uma aura cult, que é fruto, em grande parte, das mãos hábeis de Anderson, tanto na escrita de um roteiro tão bom, sobre um argumento tão interessante, quanto no manuseio de uma câmera que perscruta ângulos nada óbvios da paisagem e dos personagens. Cannes observou bem esse detalhe importante, pois premiou o filme na categoria de melhor direção. Já nos primeiros minutos de projeção, sem aviso prévio, a narrativa se adensa, colocando o espectador num horizonte de expectativas muito amplo. Quem começa a ver o filme acreditando que se trata de mais uma alternativa de riso, entre outras tantas, não tarde irá se surpreender com o que suecede diante dos seus olhos. E, certamente, acompanhará em sua jornada um doce brilho no olhar que não se apagará tão cedo, mesmo depois do fim da sessão.
Nota: 8.0
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