Desde o início da Humanidade, a violência sempre foi uma forma que o Homem escolheu para perpetuar idéias, comportamentos, identidades, diante de uma sociedade que parecia nunca lhe perceber da maneira mais usual: ouvindo. Os gritos de um indivíduo sempre pareceram muito pouco diante da fala mansa e firme da hegemonia, o que termina nos encaminhando para a formação de grupos de oposição ao ideário predominante em uma sociedade, chamados “gangues”.
Em Gangues de Nova York (Gangs of New York, 2003), Martin Scorsese traz com verossimilhança as sensações que marcaram um período cínico e patriota da História Americana, em que a violência adquire ares gráficos e poéticos ao ser tratada como metáfora das dinâmicas de distanciamento e aproximação da sociedade contemporânea. Tomando por base as brigas de gangues nas ruas de Nova York do Século XIX, que se movimentava com a crescente imigração irlandesa e com o início da Guerra Civil Americana, o roteiro de Jay Cocks, Steven Zaillian e Kenneth Lonergan aglomera anos de História de maneira viva, anulando o didatismo ao deixar que os personagens falem por si, mostrando quem são através de suas atitudes e pouco se importando em almejar a empatia do espectador.
Para dar vida a dialética do confronto, o diretor, por sua vez, utiliza-se de uma montagem seca e dinâmica que enfatiza os cortes secos e os conflitos de imagens para exacerbar o embate entre seus protagonistas, deixando o naturalismo da fluência entre os planos para os momentos em que essas tensões se aliviam para observar a emergência de uma humanidade e uma afeição perdidos. Contando com seu conhecido perfeccionismo, a fotografia, a direção de arte e os figurinos deleitam os olhos do espectador ao exibir um design que contemporaneiza o painel histórico que Scorsese trata, colorindo e descolorindo a tela para enfatizar elementos cruciais do enredo. Dessa mesma forma, o emprego de uma trilha sonora que mescla rock contemporâneo nas lutas armadas, música irlandesa que ambienta o espectador historicamente e cadências heróicas e dramáticas que conotam o romantismo interior daquelas pessoas provoca no espectador a percepção inicial de estranhamento, mas que oferece lugar a uma sensação de confluência para um objetivo único: o de retratar com olhos atuais um período de sangue fervilhante e de amor pelo lugar onde se mora.
Contudo, esse detalhismo na mise-en-scene seria em vão se não fosse feito um excelente trabalho na direção de seu elenco: Leonardo DiCaprio constrói um herói crente em sua própria força que, mesmo se permitindo ser conquistado pela “paternidade” de Bill Açougueiro, não se permite desistir de seus objetivos de vingança contra o algoz de seu pai; Daniel Day-Lewis compõe um homem violento, mas de forma alguma destituído de ética e princípios muito bem estruturados, que demonstra sua humanidade ao projetar em Amsterdam Vallon o filho que nunca teve; Cameron Diaz utiliza-se do arquétipo da femme fatale para mostrar uma mulher dividida e redimida pelo amor que sente pelos seus ideais de “pai” – Bill Açougueiro - e “amado” – Amsterdam Vallon.
Com esse conjunto de elementos, Scorsese orquestra seu épico com um estilo particular, caracterizado por uma narrativa ultraviolenta e poderosa que em nenhum se isenta dos fatos históricos que retrata, mas os transforma em uma “supra-História”, onde o enredo transcende o registro documental para ganhar frescor e visceralidade com a composição contemporânea, humana e apaixonada de uma (H)história.
Nota: 10,0
Muito legal o blog, parabéns.
ResponderExcluirQuanto ao filme, vou fazer uma confissão: sempre que vejo alguém elogiar GANGUES DE NOVA YORK, sinto uma pontada irresistível de alegria. Esse é provavelmente o filme mais subestimado da década, um épico alucinante em sua violência, explosivo, impactante. Para mim é o melhor do Scorsese nos últimos anos, apesar de também amar O AVIADOR e OS INFILTRADOS. Obra-prima, que, algum dia, ainda será devidamente valorizada.
Muito bom! Excelente atuação de Daniel Day-Lewis, DiCaprio também esteve muito bem!
ResponderExcluirPorém o filme é muito mais do que as atuações de seus atores. Não poderíamos esperar menos de um filme de Martin Scorsese. Ótimo!!!