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sexta-feira, 4 de março de 2011

Uma Rua Chamada Pecado (1951)

Em 1948, o então jovem Marlon Brando atravessou o país de carona até Massachussetts, na casa do célebre dramaturgo Tennessee Williams, a fim de fazer o teste para o papel de Stanley Kowalski na peça “Um Bonde Chamado Desejo”. Dizem que foi necessário apenas trinta segundos de leitura de script para que conseguisse o papel. A peça estreou na Broadway e fez umsucesso inesperado, dando ao diretor Elia Kazan a idéia de adaptá-la ao cinema. Essa tradução hoje se chama Uma Rua Chamada Pecado, um dos filmes mais intensos e escandalosos de todos os tempos.

Primeiramente deve-se considerar o contexto histórico da época do lançamento dessa produção. Era começo da década de 1950, uma das mais conservadoras da história do cinema americano, e de conservador esse filme não tinha nada. Pelo contrário, era escandaloso e abordava temas nunca antes sequer mencionados no cinema. Mas isso não foi impedimento para Kazan, que tratou de usar cada elemento forte de uma forma ainda mais intensificada nessa versão cinematográfica. Essa coragem foi bem sucedida, embalada por uma sutileza de mestre, responsável em driblar a censura com classe.

A história tem uma premissa bem simples, por se tratar basicamente de um drama familiar. No entanto, seu cenário e seus personagens fortíssimos a transformam num verdadeiro palco para grandes momentos de ferocidade cênica e artística, sem contar em todos os paralelismos envolvidos em seu contexto. Primeiramente o cenário, um cortiço pobre e inglório de New Orleans, onde se encontra a casa do casal Kowalski, Stanley e Stella. Ao contrário da grande maioria dos filmes que mostravam apenas realidades da elite, esse é inteiramente passado num ambiente de gente simples e pobre, porém bastante satisfeita com a vida que leva. Baseando-se nesse lugar como pano de fundo, começa então a história.

A rica burguesa Blanche DuBois, fugindo de algum segredo misterioso, vai passar uma temporada na casa de sua irmã Stella. Cheia de ideais feministas e mentalidade própria, ela vai de contra o caráter machão e brutal de seu cunhado, Stanley, mostrando-se indignada com a passividade da irmã. O choque entre as personalidades fortes de Blanche e Stanley será o ponto de partida de uma complicada trama de segredos, mentiras, tensão sexual, violência e duplos sentidos. E para entender essa trama, é preciso estudar cada personagem individualmente.

Blanche DuBois (Vivien Leigh): Numa das atuações femininas mais perfeitas e marcantes do cinema, Vivien Leigh incorpora Blanche com uma exatidão de mestre. Nas simbologias da obra, Blanche é a pura caracterização da queda da burguesia e da difícil adaptação desses velhos ricos a se adaptar ao crescimento da classe mais pobre. Ela é apegada a velhos conceitos, antigas idéias de divisão de classes e de ilusória vontade de voltar à época em que a elite dominava sobre o proletariado, por assim dizer. Até na sua forma de interpretação Vivien mostra inteligência, apegando-se a uma atuação tradicional e espelhada na velha Hollywood, como que querendo mostrar a dificuldade de Blanche em se adaptar ao novo cenário de sua vida. As cenas que protagoniza são fortes e responsáveis por grande parte da qualidade cênica da produção, como quando se mostra contraditória em repudiar Stanley e ao mesmo tempo não conseguir controlar uma imensa atração por ele. Blanche também representa a desvalorização da sociedade com as mulheres mais atrevidas, que tem uma vivência maior, ou até mesmo as mais velhas, quee adquirem por causa disso uma má reputação, assim com quando ela perde a chance de ser feliz com Mitch depois que seus segredos do passado vêm à tona. Essa pressão em cima dela a faz beirar a loucura, dando a impressão de que tudo aquilo que diziam a seu respeito era a mais pura verdade.

Stanley Kowalski (Marlon Brando): No caso de Brando, a coisa foi um tanto mais chamativa e intensa. Ele simplesmente eternizou esse filme por reinventar a maneira de atuar. Assim como seu personagem era o oposto de tudo que era tradicional, Brando tratou de inovar todo um sistema sólido de atuações masculinas de Hollywood. Muito mais real e intensa, sua atuação (reza a lenda) provocou a desistência de diversos atores de seguir em frente com suas carreiras. E, de fato, é uma coisa quase que fora do sério a performance dele, desde a primeira cena (clássica, com ele berrando o nome de Stella na janela) até os inesquecíveis momentos finais. Ninguém melhor que ele para encarnar aquele tipo de cara machista, briguento, violento, mas que causa em qualquer mulher uma louca e inexplicável atração sexual. Mais do que isso, é um personagem escandaloso por se tratar da clássica representação do desejo sexual feminino (com suas calças apertadas, camisa agarrada e manchada de suor, brutalidade), algo que era quase invisível para todos nessa época. Ou seja, um personagem berrante sendo interpretado por um ator inovador, numa época em que inovação e escândalo não eram muito bem aceitos. Foi tão visceral sua participação nesse filme, que ele acabou se tornando o personagem central da trama, enquanto na obra original é Blanche a personagem mais importante.

Stella Kowalski (Kim Hunter): De início, Stella é a personagem mais aceitável da trama, representando bem o tipo de mocinha submissa e pouco intrigante, aceitando de bom grado a tirania machista de seu marido. No entanto, com o desenrolar da trama ela acaba sendo um dos elementos mais ferozes em criticar a sociedade, por se portar como uma perfeita pateta diante de um cara violento e irracional, não se importando com sua própria saúde. Afinal, mesmo quando briga com Stanley, Stella volta atrás de suas decisões e o perdoa por tudo, incentivando-o a fazer o mesmo outras vezes. Acima disso, Stella sente um louco desejo sexual por Stanley que a cega completamente, provando que mesmo aquele tipo de dona de casa certinha poderia sentir atração física, numa clara retratação da luxúria feminina (idéia tão inaceitável para a época, cujos filmes só mostravam os homens como portadores de desejos sexuais).

Harold Mitchell (Karl Maden): Ao contrário do caráter masculino e forte de Stanley, Mitchell é um cara mimado que ainda mora com a mãe e vê em Blanche uma mulher ideal. Ele admira a força e a independência dela, como que vendo nisso os atributos que lhe faltam. Sua passividade se parece com a de Stella, só que numa versão masculina de impotência e covardia, como um homem que não sabe viver sem alguém para lhe dar ordens. Mas isso não o impede de ser influenciado pela maioria quando descobre sobre o escandaloso passado de Blanche. Ou seja, Mitch representava o segundo tipo de homem mais clássico do cinema antigo, aquele mais passivo e com menos poder de atrair sexualmente uma mulher, mas que parece oferecer maior segurança financeira e emocional, o que é exatamente o que Blanche procura.


Depois da análise desses quatros personagens centrais é interessante notar como cada um contribui para que a trama se torne uma bola de neve cada vez mais crescente, até se tornar um verdadeiro drama de caráter agressivo e intenso. Os diálogos perfeitos, as atuações brilhantes e em perfeita sintonia e a direção exata de Kazan, sobre a influência do roteiro de Tennessee finalizam essa grande história como uma das mais incríveis já vistas no cinema. Sua abordagem sobre desejo, em especial, é a maior e mais presente (com direito a um personagem de conotação homossexual). Afinal, o bonde que leva Blanche para a casa de Stella no começo da trama tem o sugestivo nome de “Desejo”, deixando por conta do espectador descobrir o que isso significará durante a trajetória da história.
A verdade é que o cinema mudou depois desse filme. Surgiu no mercado Marlon Brando, mudando todos os conceitos tradicionais de formas de interpretação psicológica de personagens. Temas fortíssimos foram colocados em pauta pela primeira vez. Vivien Leigh satirizou toda uma história de conceitos básicos de dramaturgia cênica, com exagerados gestos e expressões, remetendo à Hollywood dos filmes mudos, e querendo dizer que aquilo era tão ultrapassado quanto a burguesia que sua personagem simbolizava. As diversas indicações que o filme recebeu ao Oscar provaram que a crítica já apoiava com bons olhos esse novo tipo de cinema, e o texto de Tennessee foi um marco em abordar temáticas que viriam a inspirar diversos outros diretores a se arriscar mais em enredos futuros. Mesmo não ganhando o Oscar de melhor filme, levou os de Melhor Atriz (Leigh), Melhor Atriz Coadjuvante (Hunter), Melhor Ator Coadjuvante (Maden), Direção de Arte (em preto e branco) e Melhor Som, além da indicação de Marlon Brando a Melhor Ator.

Essa mistura de crítica social, com abordagens sexuais escandalosas num cinema ainda conservador, é perfeita para a montagem dessa obra-prima sem precedentes. Embora hoje já não seja nenhum tabu falar de sexo e de desejos, nenhum outro filme se mostrou tão sutil e ao mesmo tempo tão frontal e corajoso como esse. Seu bom gosto, seu elenco afiado, sua direção extraordinária e seu roteiro perfeito fazem de Uma Rua Chamada Pecado um filme obrigatório de se ver e rever para qualquer cinéfilo que se preze. Simplesmente (ou talvez complexamente) perfeito e inestimável.

Nota: 10.0


Um comentário:

  1. Heitor, adorei seu texto. Parabéns pela abordagem rica em detalhes. Um abraço!

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