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segunda-feira, 30 de maio de 2011

Film socialisme (2010)


Poucos filmes recentes podem ser adjetivados com o rótulo de radicais com tanta propriedade como ocorre com Film socialisme (idem, 2010). O mais recente exemplar da filmografia extensa do lendário Jean-Luc Godard é uma altiva provocação no melhor sentido da palavra, e permanece como um bastião da resistência do cineasta ao tempo e aos rótulos. Em primeiro lugar, o realizador franco-suíço abre mão da narrativa, o que gera um forte hermetismo em sua proposta de reflexão sobre tantos assuntos cobertos pelo filme. Estão lá a fragmentação da linguagem tão tipicamente contemporânea, em diálogos truncados que não permitem dar conta de um todo, bem como a mundialização progressiva que vem se instaurando no contexto em que se vive atualmente. Através desse mecanismo, Godard já vai inserindo seu trabalho na esfera do angustiante.

Que fique bem claro: esse é um tipo de filme que não permite meios termos. A experiência de se assistir a Film socialisme é, por muitos momentos, desconfortável. E nem tudo o que está sendo apresentado na tela requer, necessariamente, um entendimento pleno. O enredo, algo aparentemente imprescindível a um filme, é algo que Godard simplesmente oblitera aqui, e isso torna o seu longa uma viagem de perscruta por diferentes dispositivos de encenação. E a viagem se dá também no sentido literal da palavra, já que um dos cenários em que o filme se ambienta é um cruzeiro marítimo, onde ocorre parte da sua ação (?).

O filme está dividido em três grandes partes, que não apresentam, necessariamente, uma conexão entre si. Na primeira delas, passada no cruzeiro, personagens que jamais são nomeados dialogam sobre assuntos dos campos mais diversos, como a falência dos ideais socialistas, o valor do dinheiro e as transformações ocorridas no mundo nas últimas décadas. As conversas que se travam pelos personagens não são totalmente audíveis, e denunciam a proposta radical do diretor de experimentar ao máximo a incomunicabilidade humana em tempos hodiernos. Um nome conhecido que surge nesse trecho é o da cantora Patti Smith, que interpreta a si mesma (esse conceito é totalmente passível de controvérsia) e é um dos tópicos dos assuntos abordados pelo filme, que tem a aparência de uma tese de doutorado sobre a História como ente vivo e pulsante.

O som é um aspecto que salta aos ouvidos do espectador em Film socialisme. Propositalmente, Godard instalou um microfone no convés do navio em que se passa a primeira parte do filme, e todos – absolutamente todos – os sons do ambiente são capturados pelo microfone. Esse recurso impossibilita a audição plena dos diálogos e dos demais sons produzidos pelos personagens, já que o vento se encarrega de desorientar qualquer tentativa de compreensão mais profunda do que está realmente acontecendo em cada cena. Também por conta desse expediente, a edição de som do longa-metragem é uma das mais engenhosas de que já se ouviu falar e, certamente, mereceria um prêmio à sua altura. Como já foi comentado anteriormente, Godard não está interessado em contar uma história que apresente os tradicionais “começo, meio e fim”, mas em investigar as motivações que podem ter levado ao fim do socialismo como ideologia para uma nação, entre outros temas. O navio no qual o cineasta situa a primeira parte de sua investigação tem uma longa viagem pela frente, que inclui cidades históricas e países importantes para a humanidade, como Nápoles, Odessa, Egito, Barcelona e Palestina, cada qual tendo a sua parcela de representatividade para a suposta narrativa. Na tela, esse navio funciona como um signo da transitoriedade que perpassa as relações humanas, já que cada um de seus passageiros tem uma vida para além do tempo em que estão navegando dentro dele.



A divisão triádica não é uma novidade em se tratando de um filme de Godard, já que, em seu filme anterior, Nossa música (Notre musique, 2004), ele havia empregado esse mesmo expediente, ao propor uma paráfrase, à sua maneira, da obra de Dante Alighieri. A exemplo de A divina comédia, o diretor estruturou a narrativa de seu filme em inferno, com imagens de guerra e uma Sarajevo destroçada, purgatório, com o continente europeu nos dias de hoje, e paraíso, com um cenário pacífico onde guardas vigiavam uma pequena população constantemente. Portanto, ele já possui algum domínio dessa técnica, e acaba por construir três filmes em um só com Film socialisme. Há também uma aproximação com um trabalho de Manoel de Oliveira, Um filme falado (idem, 2004), em que um cruzeiro pelo mesmo Mediterrâneo servia de ambientação para uma viagem pelos vários marcos da civilização ocidental. A diferença é que o percurso de Godard é muito mais furioso e exegético que o do realizador português.

A segunda parte de Film socialisme é o trajeto em si pelas cidades e países acima mencionados, e é assinalada pelo uso de letreiros que lançam questionamentos e incógnitas que despertam a inquietude que habita cada espectador. Aliás, esses letreiros com mensagens aparentemente desconexas perpassam as três partes do longa, e são citações de nomes icônicos do pensamento ocidental, como Derrida, Benjamin, Nietzsche e outras figuras que ajudaram a redefinir filosoficamente o mundo em que vivemos. As cidades, como personagens desse percurso que são, choram suas mazelas, apresentam suas facetas desalentadas e erguem-se como símbolos de constante mutabilidade impressa pelo ser humano.

Na terceira e última parte da sinfonia proposta pelo cineasta, segue-se uma reflexão crítica sobre os ideais que nortearam o pensamento socialista: liberdade, igualdade e fraternidade. Eles são colocados em discussão com muita propriedade pelo realizador que fez da experimentação da linguagem a maior de suas bandeiras, e a forma brilhante como ele se apropria novamente da arte do fazer cinematográfico com esse Film socialisme atesta sua capacidade de ruptura radical com rótulos. Cannes reconheceu o talento de Godard mais uma vez, selecionando seu trabalho para a mostra paralela Um certo olhar em 2010. O fato é que é mesmo difícil enquadrar essa película nesta ou naquela nomenclatura, e o estado do espectador ao final da sessão é de confusão mental nítida, assegurada pela montagem frenética e hiperbólica adotada pelo diretor. Uma análise que dê conta das numerosas camadas justapostas e superpostas desse longa é deveras complexa, inclusive por questões que fogem à alçada do próprio Godard. Os três movimentos, por assim dizer, de Film socialisme, são insígnias da inquietação de um homem repleto de ideias que, para disseminá-las, elegeu mecanismos difusos.

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