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sábado, 10 de setembro de 2011

Bruna Surfistinha (2011)

O Doce Veneno do Escorpião

Rachel Pacheco é fruto de uma sociedade de massa em que jovens estão programados a seguir a sua vida numa estrada de mão única, a fim de serem homens e mulheres ditos bem-sucedidos por outras pessoas que dizem o que é ser bem-sucedido e não explicam sequer o por que. Sua família é tradicional, cafona e, em última análise, comum. Num mundo maniqueísta que se transforma e se massifica na mesma medida, Rachel Pacheco vivia tentada a seguir a contra-mão do que o ‘status-quo’ lhe impunha. Percebendo desde cedo que um empreguinho e uma vida vinculada e dependente de alguém não parecia interessante o suficiente para ela amar a pessoa que via no espelho, Rachel lutou por muito tempo com a pior arma de todas, a inércia, tentando provocar sua família, gritando em silêncio, pedindo ajuda para se encontrar. Em dado momento, completamente descrente das pessoas a sua volta e de com o próprio futuro, Rachel decidiu sair de casa e tomar o atalho que a transformaria em Bruna Surfistinha, um grande sucesso profissional, moralmente reprovado por sua família, sim, mas um sucesso incontestável, sem dúvidas.

Contado dessa forma, o argumento do filme "Bruna Surfistinha - O Doce Veneno do Escorpião" remonta uma jornada de auto-descobrimento, edificante como aquela de Che Guevara, contada em "Diário de Motocicleta", protagonizado por Gael Garcia Bernal. A questão é que Bruna Surfistinha também é fruto de uma sociedade de massa, um pouco diferenciada, não da forma escrachada, mas sim velada e com sua lógica própria. Bruna é um ideal de mulher sugestionado pela música, pela mídia, pelo ideal deturpado de libertação que impera hoje, pelos diversos motivos, pelas mais diversas explicações. Bruna nada mais é que uma componente da classe média de um sub-mundo que existe desde que o mundo, mas soube se profissionalizar e estender sua influência para além de onde ela própria supunha chegar, pela via da internet, pelo sucesso que sua forma empreendedora de fazer negócio a levou. É triste constatar, mas a prostituição de hoje chega a se apresentar para muitas, mulheres, independentemente de sua classe social como uma alternativa de vida mais segura de construir um futuro.

Enfim, todas essas conclusões mostram que tanto Bruna Surfistinha, quanto Rachel Pacheco são as faces de uma mesma moeda, uma vez que os seus julgadores são pessoas de uma sociedade que se diz moderna, mas ainda está presa aos mesmo ideais arcaicos de sempre e assim sempre será.


E que grande desafio este de provocar no espectador a epifania de perceber que os dois destinos estão fadados a felicidades, julgamentos e a percalços para um grande público acostumado a tanto maniqueísmo, não é? O estreante Marcus Baldini tem nas mãos a direção de um filme sobre uma pessoa polêmica por natureza e igualmente popular como é Bruna Surfistinha.

Iniciado numa composição quase televisiva, a principio, não dá para esperar muito de Bruna Surfistinha. O que vemos na tela é aquela velha lógica visual de um tradicionalismo extremo, denunciada das formas mais clichês possíveis, a partir do desenho de figuras unidimensionais sentadas numa morna mesa de café-da-manhã e reclamando da vida. Eis que surge o recurso que poderia ter sido utilizado para bater o martelo de vez e enterrar as esperanças de tornar Bruna um relato tangível e verdadeiro, mas que se mostra a primeira sacada acertada para encontrar o rumo bem sucedido que o longa toma após os vinte minutos iniciais. Pela narração em off, podemos sentir que as impressões de Bruna e seus julgamentos sobre pessoas e situações a sua volta são pertinentes e refletem idéias de uma pessoa melancólica e amedrontada com a possibilidade de se tornar alguém frio e inerte como as pessoas a sua volta.

Bruna/Rachel é explorada da forma mais humana possível, a partir da adaptação do livro "O Doce Veneno do Escorpidão", escrito pela própria protagonista do filme no qual ela conta toda sua trajetória e os relatos de sua vida como prostituta. O longa dirigido de forma não-maniqueista,conta com um lapso temporal da vida de Rachel Pacheco, funcionando como um estudo de personagem, concentrado em documentar a vida, mas jamais julgar Rachel pelos seus atos. Seus dilemas, suas crises, sua degradação física e psicológica estão na telas, mas é o espectador quem deve decidir a forma como encara a essência de Bruna Surfistinha e, por trás dela, de Rachel Pacheco.

Pontuado por uma trilha sonora melancólica, porém não necessariamente depressiva ou morna, o filme que não se presta a encerrar questões, é pontuado por figuras simbólicas em momentos simbólicos, a fim de resumir em pouco mais de duas horas a verdade por trás do mito do sucesso Bruna Surfistinha e também com o intuito de apresentar as pessoas com quem ela conviveu no trabalho ao longo de seus três anos como prostituta. As interpretações dos atores e atrizes é essencial para tanto, a começar por Drica Moraes, que em seu padrão moral rígido e profissional, alterna momentos de tranqüilidade, preocupação, ironia e severidade, apresentando um pouco de todas as vertentes que se podem encontrar num cafetão ou numa cafetina, no caso especifico. Fabíula Nascimento e Guta Ruiz também são extremamente competentes ao sintetizar dois tipos comuns dentro desse sub-mundo em que vive Bruna, ainda que tenham pouco tempo em cena.

Por fim, é Deborah Secco quem encarna Bruna com imenso talento e veracidade. Atriz desde muito nova, Deborah abandona qualquer vicio de interpretação que já conhecemos de suas novelas globais e se empenha em dar a Bruna uma complexidade que pode ser vista não só em suas atitudes, mas em seu visual e seu gestual ao longo da projeção. Percebe-se que até mesmo seu corpo é símbolo da transformação dela no transcorrer do tempo, pela forma como seu cabelo que antes cobria seu rosto e sua personalidade reclusa ("Chorava horrores quando minha mãe mandava eu dormir na casa de uma amiga e me obrigava a socializar com alguém") vai dando lugar a penteados mais ousados que deixam amostra mais da verdadeira pessoa que está por trás daquela alcunha "Bruna, que tem cara de surfistinha".

No fim das contas, descobrimos que é uma lógica capitalista com toques de humanidade que fez de Bruna uma empreendedora, o seu mergulho no trabalho que a fez viver emoções recontidas, que a permitiu esconder ou descobrir sua própria personalidade, testando a sua situação ao limite do aceitável, a levou aonde levou. Foi a partir da coisificação da figura da mulher e da atração que muitos homens têm por essa condição é que Bruna encontrou uma forma de mostrar sua humanidade e seu interesse genuíno (?) pelos dilemas dos homens que se deitavam em sua cama, É na transição do nível de coisificação sexual para o nível de indicador humano que ela soube explorar o apelo emocional conquistou a tantos e tantas.

De toda forma, trata-se de uma tragetória que fez jus ás telonas e a divulgação a cerca dele, pois enseja discussões e entretém o grande público ao mesmo tempo. Talvez, com o tempo, Rachel viesse a perceber que, levando a vida que levava, seu papel de relevância e suposto heroísmo se resumiria a salvar uma amiga de ter seu carro apreendido numa blitz utilizando do seu corpo para isso, mas o ponto alto do filme é não obrigar que o espectador acredite no que o diretor ou o roteirista quer quer você acredite. Assim como Raquel/Bruna, que precisou fazer suas escolhas e reflexões após sair de casa, o espectador também precisa fazer as suas após a projeção.

They don't make mistakes (?)

Nota: 7.5



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