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terça-feira, 21 de agosto de 2012

...E o Vento Levou (1939)



Lembro-me que, lá para 2009, eu desejava fazer um curta-metragem para minha escola satirizando clichês românticos. Tinha até nome: “Novela Brasileira” - de fato, era mais “mexicana” do que “brasileira”, pois os elementos satirizados iam bem além do que encontramos na mais exagerada cena de “Avenida Brasil”. O curta terminaria com o casal romântico (um moço extremamente idealista e uma moça insuportavelmente fresca) se beijando em frente a um salgueiro (ou uma árvore imponente qualquer) à luz do pôr-do-sol, enquanto a câmera se afastava rapidamente para revelar um cenário tão grandioso quanto cafona (seria em uma espécie de jardim-zoológico, aliás). Naquela época, eu nada sabia de “...E o Vento Levou” em termos de narrativa; sabia de sua reputação e mesmo de toda sua história de produção, mas nada do enredo em si. Estava pouco interessado. Agora que finalmente completei minha jornada por este épico de quatro horas percebo, não sem certo senso de gozação, que eu quase satirizei uma das seqüências mais famosas de todos os tempos - e pertencente, como se não bastasse, da história de amor mais (irracionalmente) idolatrada do cinema.

“...E o Vento Levou” é um grande filme, deixemos bem claro. Minha experiência por ele foi sem dúvida positiva, ainda que a balança de minha aprovação por muitas vezes tenha pendido (e alcançado) o patamar negativo. É um delírio técnico de ambição insuperável e um roteiro que às vezes toma caminhos geniais (mas que nunca vai até o fim deles). Mas apenas os que colocam as olheiras da adoração fílmica irão ignorar as situações afetadas, os personagens insuportáveis e a história que, quando não é simplista, é emburrecedora. “...e o Vento Levou” talvez funcionasse perfeitamente em seu tempo (nem disso tenho certeza), mas hoje é difícil levá-lo 100% a sério.

Scarlett O’Hara é o primeiro grande empecilho com que temos que lidar, visto que ela é (oh, céus!) o centro da narrativa. Como personagem principal, não creio que história alguma possa escolher alguém mais antipática (e não menos amoral) do que a senhora O’Hara. Se a intenção foi construir uma mulher forte, símbolo máximo do feminismo (O’Hara é freqüentemente  elogiada pelo temperamento difícil e espírito livre1), não posso negar que o filme tenha conseguido: O’Hara consegue virtualmente tudo que deseja à força de sua vontade, chegando a ser uma manipuladora genial. Mas é difícil - a não ser para os psicopatas - considerar suas ações como “louváveis”: ela é uma mulher que, sem remorso algum, usa de sua beleza para tapear os homens ou inflar o próprio ego. Ela mente, trapaceia, condena seus semelhantes à escravidão, trai a própria irmã para se casar com seu pretendente (visando apenas o seu dinheiro, diga-se de passagem), passa o último quarto do filme praguejando as pessoas como uma velha mal-amada, vive com uma nojenta expressão de desdém no rosto, transforma a vida de seu marido em um inferno... e jamais passa por qualquer tipo de redenção para a maior parte disso. Na verdade, ela aceita tudo com a mais perfeita normalidade, arrependendo-se parcialmente aqui ou acolá (mesmo sua súbita paixão por Rhett Butler não passa, ao fundo, da mania egoísta de ter todos aos seus pés). O pior é que nem mesmo o filme parece reprovar suas atitudes, visto que ela escapa de quase todas as conseqüências negativas em que a maioria de suas ações, uma hora ou outra, resultaria na vida real.

Mas a história de “...E o Vento Levou” freqüentemente têm inclinações ao interessante e genial, e a própria Scarlett O’Hara quase tomou o caminho para se tornar alguém realmente admirável. É possível lhe perdoar as faltas na primeira metade da projeção, visto que ela não passa de uma mimada não muito diferente de suas irmãs (cujo defeito é apenas o de serem muito sonsas); quando a Guerra Civil destrói seu estilo de vida e ela é forçada ao trabalho pesado, tendo que carregar nas costas o fardo de manter todos que supostamente ama (sua terra Tara principalmente), então a personagem se torna muitíssimo divertida, até mesmo admirável: ver sua exclamação de que nunca mais irá passar fome e as agruras que ele enfrenta para manter seu lar de pé é inspirador. A partir daí, a moral do filme parece a da superação, em que a nova e forte O’Hara se erguerá como o exemplo da vitória sobre o fraco, o vil e o mimado. Mas, como eu disse, o roteiro nunca vai ao final dos caminhos geniais que toma, e é impressionante como a personagem volta à estaca zero em um piscar de olhos: cansada do trabalho duro, ele se rende às tentações e explora os homens em busca do dinheiro, casando-se até reconquistar a fortuna perdida. E lá se vai uma grande história, lá se vai a oportunidade de ser realmente um filme a frente de seu tempo.

O Romantismo talvez seja a chaga-mor desta produção. No fundo, este é um filme que segue a pior tradição do gênero: o “amor” (ou que se entende por ele) é o centro de tudo, e todos os reveses da vida têm o único propósito de criar alguma grande situação romântica. É por isso que, passada toda a guerra e todas as agruras, o filme se interessa apenas na vida familiar - por mais cafona que ela seja. Não temos “Scarlett, a guerreira”, “Scarlett, a trabalhadora”, “Scarlett, a empresária”, “Scarlett, a redimida”, mas “Scarlett, a apaixonada”, “Scarlett, a bela”, “Scarlett, a dona-de-casa”! Acovardado, o roteiro prefere as intrigas da vida de casal às duras realidades (e gloriosas vitórias) de uma vida de solitário esforço. Às vezes, tenho a impressão de estar assistindo a uma novela mexicana, faltando apenas as paradas para intervalo (“estamos apresentando... ‘Os Amores de Scarlett’”). Dá até para dividir em capítulos, com o narrador anunciando: “Será que Scarlett conseguirá o amor de Ashley? Será que Rhett optará por um divórcio? E o que Mammy esconde debaixo da saia? Isso e muito mais você confere amanhã, no próximo capítulo de ‘Os Amores de Scarlett’”. Essa é a alma de “...e o Vento Levou”, infelizmente.

Do outro lado do ringue, como oposto-polar de Scarlett, temos a “candidata a Jesus Cristo” Melanie Hamilton, cujo altruísmo é levado a patamares tão fanáticos que qualquer um que a veja se sente envergonhado de si próprio. Teoricamente, ela é a personagem por quem qualquer um deveria se apaixonar. Pois é, teoricamente: apesar de evitar estereótipos com maior destreza do que o esperado, “...E o Vento Levou” faz de Melanie o estereótipo da Bondade. E não há nada de interessante nisso: ela é tão perfeita, tão sem-falhas, que é tediosa! Se uma narrativa se constrói com base em conflitos (ou seja, perturbações no estado inicial), como criar uma história ao redor de alguém naturalmente perfeito?! Apenas inserindo-o em um mundo imperfeito, mas nem isso dá certo: Melanie é tão ferrenha em sua bondade que, mesmo diante das maiores adversidades, seu grau de mudança é tão significativo quando o deslocamento das placas tectônicas em um segundo. É uma personagem incorruptível e santa; portanto, tão interessante quanto o ciclo reprodutivo dos protozoários.2

Mas se Scarlett é desprezível e Melanie é invisível, o que dizer de Ashley Wilkes, o peso de papel do filme? Se os problemas das duas primeiras derivam de um trabalho errôneo feito sobre suas personalidades, o problema de Ashley é a falta dela! Toda vez que ele aparece na tela, eu me pergunto qual a sua razão de existir. O que ele representa? Cavalheirismo? Cortesia? Honra? Desilusão? Fraqueza? Impossível saber. Ele não desempenha nenhum papel de relevância na história senão o de existir e ser a paixão platônica de O’Hara. Mas como alguém como Scarlett se apaixonaria por tamanho vácuo de carisma?! Nem mesmo expressões faciais o ator Leslie Howard se esforça em fazer, deixando a cara de seu personagem com uma perpétua feição de melancolia e preocupação. Seria ele um parente distante de Bella Swan (sim, eu acabei de fazer uma comparação com “Crepúsculo”. Crucifiquem-me) ou de Amos Hart (Chicago)? Nada mais pode ser dito sobre ele, porque ele não faz nada e não é nada. Na verdade, ele é O Nada!

É por isso que agradeço aos céus por Rhett Butler existir! A importância de Clark Gable para a relevância do quarteto principal do filme é tão grande que, toda vez que ele aparece em uma cena, mesmo que por dez segundos, ela está salva. Pergunte-me sobre “presença de cena” e eu responderei: Clark Gable. O ator é simplesmente um milagre; seu personagem é, disparado, a coisa mais memorável do filme, fazendo sombra até mesmo à técnica estupenda. Uma cena apenas com Scarlett e Melanie? Tediosa! Scarlett e Ashley? Açucarada! Melanie e Ashley? Buraco-negro de emoções. Mas introduza um pouco de Rhett Butler em qualquer uma delas e estará tudo bem! Não é difícil entender porque Butler se tornou (e permanece) como o galã supremo do imaginário feminino: ele é o Homem de Verdade com que as mulheres tanto sonham! Rico, cavalheiro, cafajeste, obsceno, direto, honesto e monstruosamente confiante (mas nunca arrogante), Rhett é um “Natural Born Ladiesman”, o tipo de cara que qualquer homem queria ter como companheiro de chope e qualquer mulher como amante. Mesmo quando ele quebra sua regra-cardeal (“Eu não sou do tipo que se casa”) e se rende à naja chamada Scarlett, ele revela uma faceta que se prova tão interessante quanto seu lado aventureiro: o de um pai-coruja e de um marido dedicado e fiel. Sua serenidade perante os chiliques intermináveis da esposa (que correspondem a 60% dos diálogos da segunda metade do filme) e seu pragmatismo com o casamento são provas do engrandecimento do personagem, o único a passar por uma transformação positiva na segunda metade no filme. E preciso comentar sobre o prazer de ouvir o “Frankly, my dear, I don’t give a damn!” sendo arremessado bem na cara da Rainha da Miséria? É puro ouro!

O que salva definitivamente “...E o Vento Levou” da irrelevância è sua ambição e técnica. Projetado desde o início como símbolo da pujança de Hollywood, a criação de David O. Selznick de fato expandiu as fronteiras da técnica cinematográfica com maior intensidade do que a Marcha para o Oeste expandiu as dos Estados Unidos: este filme é titânico, um dos poucos onde a técnica compensa o conteúdo. Nota-se claramente o exibicionismo (com causa) da produção ao gravar cenas como Scarlett percorrendo um campo de feridos ou, claro, o shot mais famoso do cinema, aquele que eu quase satirizei: a câmera se afastando rapidamente dos personagens à sombra de uma gigantesca árvore, em alto contraste à luz do pôr-do-sol, enquanto a música-tema atinge patamares épicos. Tudo que há de grande na técnica pode ser resumido neste shot, que abre o filme e encerra cada um de seus atos.

Mas há um lado negativo: embora este seja o “Avatar” de seu tempo, contando com equipamentos e tecnologias porque nenhum outro estúdio na época conseguiria pagar, a audácia de seus diretores Victor Fleming, George Cukor e Sam Wood não voa tão alto. Quando se trata de ângulos e movimento de câmera, “...e o Vento Levou” é bem convencional, sem a ambição de se criar algo distinto ou inovador, e isso é típico de um filme completamente dominado pelo produtor e estúdio. Passados os shots megalomaníacos, cujas ocorrências se dão em momentos pré-determinados, o que resta é uma obra que não tem muito a oferecer em termos de direção. Oportunidade perdida para o senhor Selznick, que não conseguiu fazer com rios de dinheiro o que Orson Welles faria com uma fração da quantia dois anos depois, em “Cidadão Kane”.

Assim, embora o escopo seja tremendo, o produto entregue é muito aquém ao potencial. Os grandes cenários, o pano de fundo épico (Guerra Civil e reorganização do Sul norte-americano) e a técnica em geral não deveriam se sujeitar a uma história tão simplória (lembremo-nos: não passa de um conto de amor guiado por uma mulher desprezível), mas é isso que acontece. “É como um gigantesco cofre guardando uma única moeda”, como já disse certo crítico sobre outro filme3.

Nunca é bom sinal quando um grande filme pode ser acidentalmente parodiado por um estudante de ensino médio, mas foi isso que eu quase fiz com “...E o Vento Levou”. Apesar de suas virtudes e de sua ambição a níveis fanáticos (que realmente impregna o espectador), ele possui inúmeras seqüências, personagens e situações que hoje seriam facilmente descritas como over-the-top (ou “cafonas”, se preferir). É um dizer comum que “...E o Vento Levou” só melhora com o passar do tempo, e eu não poderia discordar mais. É uma obra interessante e de grande importância histórica, sem dúvida, mas não vejo como alguém se apaixonaria por ela, principalmente se esse alguém cultiva uma mentalidade realista e pé-no-chão, com baixa tolerância a baboseiras românticas. Talvez seja por isso que eu goste tanto de Rhett Butler: ele é a única mente sã em um oceano de insanidades idealistas, e cada comentário mordaz que ele lança a seus semelhantes são também críticas ao filme em si. Não que Margaret Mitchell ou os roteiristas tivessem qualquer intenção disso, mas devemos exaltar felizes coincidências toda vez que elas aparecem.

NOTA: 7,0

1 Espírito livre? Nem tanto. Trata-se de uma mulher que não consegue viver sem um homem, gemendo constantemente o nome de seu amado platônico Ashley e pulando de casamento em casamento para manter as aparências e, claro, aumentar a conta bancária;
2 Os biólogos que me perdoem;
3 A Árvore da Vida”, para os curiosos.

4 comentários:

  1. Considero um filmaço, mesmo que hoje a história de amor complicado possa parecer datada, ainda assim a força da história compensa.

    Cinemão de primeira qualidade.

    Abraço

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  2. Obra-prima atemporal, de personagens fascinantes e inesquecíveis. Além de que Vivien Leigh é a responsável pela maior interpretação feminina da história do Cinema.

    Mas seu ponto de vista é até entendível, Diogo. Visto nos dias de hoje, o filme realmente soa brega e antiquado.

    http://avozdocinefilo.blogspot.com.br/

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  3. Concordo com esta visão, que considero realista, deste clássico. É um filme belo, mas insosso e moralmente confuso. Abraço

    http://onarradorsubjectivo.blogspot.pt/

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  4. Diogo, sinceramente, você entrou muito com sua visão ao ver e ler o filme.

    1939, meu caro. 1939. Muita calma com desejos e expectativas que, no fim, se resumem a Anacronismo. Contexto sempre.

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