Lembro-me que, lá para 2009, eu desejava fazer
um curta-metragem para minha escola satirizando clichês românticos. Tinha até
nome: “Novela Brasileira” - de fato, era mais “mexicana” do que “brasileira”,
pois os elementos satirizados iam bem além do que encontramos na mais exagerada
cena de “Avenida Brasil”. O curta terminaria com o casal romântico (um moço
extremamente idealista e uma moça insuportavelmente fresca) se beijando em
frente a um salgueiro (ou uma árvore imponente qualquer) à luz do pôr-do-sol,
enquanto a câmera se afastava rapidamente para revelar um cenário tão grandioso
quanto cafona (seria em uma espécie de jardim-zoológico, aliás). Naquela época,
eu nada sabia de “...E o Vento Levou” em termos de narrativa; sabia de sua
reputação e mesmo de toda sua história de produção, mas nada do enredo em si.
Estava pouco interessado. Agora que finalmente completei minha jornada por este
épico de quatro horas percebo, não sem certo senso de gozação, que eu quase
satirizei uma das seqüências mais famosas de todos os tempos - e pertencente,
como se não bastasse, da história de amor mais (irracionalmente) idolatrada do
cinema.
“...E o Vento Levou” é um grande filme,
deixemos bem claro. Minha experiência por ele foi sem dúvida positiva, ainda
que a balança de minha aprovação por muitas vezes tenha pendido (e alcançado) o
patamar negativo. É um delírio técnico de ambição insuperável e um roteiro que
às vezes toma caminhos geniais (mas que nunca vai até o fim deles). Mas apenas
os que colocam as olheiras da adoração fílmica irão ignorar as situações
afetadas, os personagens insuportáveis e a história que, quando não é
simplista, é emburrecedora. “...e o Vento Levou” talvez funcionasse
perfeitamente em seu tempo (nem disso tenho certeza), mas hoje é difícil levá-lo
100% a sério.
Scarlett O’Hara é o primeiro grande empecilho
com que temos que lidar, visto que ela é (oh, céus!) o centro da narrativa.
Como personagem principal, não creio que história alguma possa escolher alguém
mais antipática (e não menos amoral) do que a senhora O’Hara. Se a intenção foi
construir uma mulher forte, símbolo máximo do feminismo (O’Hara é
freqüentemente elogiada pelo
temperamento difícil e espírito livre1), não posso negar que o filme
tenha conseguido: O’Hara consegue virtualmente tudo que deseja à força de sua
vontade, chegando a ser uma manipuladora genial. Mas é difícil - a não ser para
os psicopatas - considerar suas ações como “louváveis”: ela é uma mulher que,
sem remorso algum, usa de sua beleza para tapear os homens ou inflar o próprio
ego. Ela mente, trapaceia, condena seus semelhantes à escravidão, trai a
própria irmã para se casar com seu pretendente (visando apenas o seu dinheiro,
diga-se de passagem), passa o último quarto do filme praguejando as pessoas
como uma velha mal-amada, vive com uma nojenta expressão de desdém no rosto,
transforma a vida de seu marido em um inferno... e jamais passa por qualquer
tipo de redenção para a maior parte disso. Na verdade, ela aceita tudo com a
mais perfeita normalidade, arrependendo-se parcialmente aqui ou acolá (mesmo
sua súbita paixão por Rhett Butler não passa, ao fundo, da mania egoísta de ter
todos aos seus pés). O pior é que nem mesmo o filme parece reprovar suas
atitudes, visto que ela escapa de quase todas as conseqüências negativas em que
a maioria de suas ações, uma hora ou outra, resultaria na vida real.
Mas a história de “...E o Vento Levou”
freqüentemente têm inclinações ao interessante e genial, e a própria Scarlett
O’Hara quase tomou o caminho para se tornar alguém realmente admirável. É
possível lhe perdoar as faltas na primeira metade da projeção, visto que ela
não passa de uma mimada não muito diferente de suas irmãs (cujo defeito é
apenas o de serem muito sonsas); quando a Guerra Civil destrói seu estilo de
vida e ela é forçada ao trabalho pesado, tendo que carregar nas costas o fardo
de manter todos que supostamente ama (sua terra Tara principalmente), então a
personagem se torna muitíssimo divertida, até mesmo admirável: ver sua
exclamação de que nunca mais irá passar fome e as agruras que ele enfrenta para
manter seu lar de pé é inspirador. A partir daí, a moral do filme parece a da
superação, em que a nova e forte O’Hara se erguerá como o exemplo da vitória
sobre o fraco, o vil e o mimado. Mas, como eu disse, o roteiro nunca vai ao
final dos caminhos geniais que toma, e é impressionante como a personagem volta
à estaca zero em um piscar de olhos: cansada do trabalho duro, ele se rende às
tentações e explora os homens em busca do dinheiro, casando-se até reconquistar
a fortuna perdida. E lá se vai uma grande história, lá se vai a oportunidade de
ser realmente um filme a frente de seu tempo.
O Romantismo talvez seja a chaga-mor desta
produção. No fundo, este é um filme que segue a pior tradição do gênero: o “amor”
(ou que se entende por ele) é o centro de tudo, e todos os reveses da vida têm
o único propósito de criar alguma grande situação romântica. É por isso que,
passada toda a guerra e todas as agruras, o filme se interessa apenas na vida
familiar - por mais cafona que ela seja. Não temos “Scarlett, a guerreira”,
“Scarlett, a trabalhadora”, “Scarlett, a empresária”, “Scarlett, a redimida”,
mas “Scarlett, a apaixonada”, “Scarlett, a bela”, “Scarlett, a dona-de-casa”!
Acovardado, o roteiro prefere as intrigas da vida de casal às duras realidades
(e gloriosas vitórias) de uma vida de solitário esforço. Às vezes, tenho a
impressão de estar assistindo a uma novela mexicana, faltando apenas as paradas
para intervalo (“estamos apresentando...
‘Os Amores de Scarlett’”). Dá até para dividir em capítulos, com o narrador
anunciando: “Será que Scarlett conseguirá
o amor de Ashley? Será que Rhett optará por um divórcio? E o que Mammy esconde
debaixo da saia? Isso e muito mais você confere amanhã, no próximo capítulo de
‘Os Amores de Scarlett’”. Essa é a alma de “...e o Vento Levou”,
infelizmente.
Do outro lado do ringue, como oposto-polar de
Scarlett, temos a “candidata a Jesus Cristo” Melanie Hamilton, cujo altruísmo é
levado a patamares tão fanáticos que qualquer um que a veja se sente
envergonhado de si próprio. Teoricamente, ela é a personagem por quem qualquer
um deveria se apaixonar. Pois é, teoricamente: apesar de evitar estereótipos
com maior destreza do que o esperado, “...E o Vento Levou” faz de Melanie o
estereótipo da Bondade. E não há nada de interessante nisso: ela é tão
perfeita, tão sem-falhas, que é tediosa! Se uma narrativa se constrói com base
em conflitos (ou seja, perturbações no estado inicial), como criar uma história
ao redor de alguém naturalmente perfeito?! Apenas inserindo-o em um mundo
imperfeito, mas nem isso dá certo: Melanie é tão ferrenha em sua bondade que,
mesmo diante das maiores adversidades, seu grau de mudança é tão significativo
quando o deslocamento das placas tectônicas em um segundo. É uma personagem
incorruptível e santa; portanto, tão interessante quanto o ciclo reprodutivo
dos protozoários.2
Mas se Scarlett é desprezível e Melanie é
invisível, o que dizer de Ashley Wilkes, o peso de papel do filme? Se os
problemas das duas primeiras derivam de um trabalho errôneo feito sobre suas
personalidades, o problema de Ashley é a falta dela! Toda vez que ele aparece
na tela, eu me pergunto qual a sua razão de existir. O que ele representa?
Cavalheirismo? Cortesia? Honra? Desilusão? Fraqueza? Impossível saber. Ele não
desempenha nenhum papel de relevância na história senão o de existir e ser a
paixão platônica de O’Hara. Mas como alguém como Scarlett se apaixonaria por
tamanho vácuo de carisma?! Nem mesmo expressões faciais o ator Leslie Howard se
esforça em fazer, deixando a cara de seu personagem com uma perpétua feição de
melancolia e preocupação. Seria ele um parente distante de Bella Swan (sim, eu
acabei de fazer uma comparação com “Crepúsculo”. Crucifiquem-me) ou de Amos
Hart (Chicago)? Nada mais pode ser
dito sobre ele, porque ele não faz nada e não é nada. Na verdade, ele é O Nada!
É por isso que agradeço aos céus por Rhett
Butler existir! A importância de Clark Gable para a relevância do quarteto
principal do filme é tão grande que, toda vez que ele aparece em uma cena, mesmo
que por dez segundos, ela está salva. Pergunte-me sobre “presença de cena” e eu
responderei: Clark Gable. O ator é simplesmente um milagre; seu personagem é,
disparado, a coisa mais memorável do filme, fazendo sombra até mesmo à técnica
estupenda. Uma cena apenas com Scarlett e Melanie? Tediosa! Scarlett e Ashley?
Açucarada! Melanie e Ashley? Buraco-negro de emoções. Mas introduza um pouco de
Rhett Butler em qualquer uma delas e estará tudo bem! Não é difícil entender
porque Butler se tornou (e permanece) como o galã supremo do imaginário
feminino: ele é o Homem de Verdade com que as mulheres tanto sonham! Rico,
cavalheiro, cafajeste, obsceno, direto, honesto e monstruosamente confiante
(mas nunca arrogante), Rhett é um “Natural
Born Ladiesman”, o tipo de cara que qualquer homem queria ter como
companheiro de chope e qualquer mulher como amante. Mesmo quando ele quebra sua
regra-cardeal (“Eu não sou do tipo que se
casa”) e se rende à naja chamada Scarlett, ele revela uma faceta que se
prova tão interessante quanto seu lado aventureiro: o de um pai-coruja e de um
marido dedicado e fiel. Sua serenidade perante os chiliques intermináveis da
esposa (que correspondem a 60% dos diálogos da segunda metade do filme) e seu pragmatismo
com o casamento são provas do engrandecimento do personagem, o único a passar
por uma transformação positiva na segunda metade no filme. E preciso comentar
sobre o prazer de ouvir o “Frankly, my
dear, I don’t give a damn!” sendo arremessado bem na cara da Rainha da
Miséria? É puro ouro!
O que salva definitivamente “...E o Vento
Levou” da irrelevância è sua ambição e técnica. Projetado desde o início como
símbolo da pujança de Hollywood, a criação de David O. Selznick de fato
expandiu as fronteiras da técnica cinematográfica com maior intensidade do que
a Marcha para o Oeste expandiu as dos Estados Unidos: este filme é titânico, um
dos poucos onde a técnica compensa o conteúdo. Nota-se claramente o
exibicionismo (com causa) da produção ao gravar cenas como Scarlett percorrendo
um campo de feridos ou, claro, o shot
mais famoso do cinema, aquele que eu quase satirizei: a câmera se afastando
rapidamente dos personagens à sombra de uma gigantesca árvore, em alto
contraste à luz do pôr-do-sol, enquanto a música-tema atinge patamares épicos.
Tudo que há de grande na técnica pode ser resumido neste shot, que abre o filme e encerra cada um de seus atos.
Mas há um lado negativo: embora este seja o
“Avatar” de seu tempo, contando com equipamentos e tecnologias porque nenhum
outro estúdio na época conseguiria pagar, a audácia de seus diretores Victor
Fleming, George Cukor e Sam Wood não voa tão alto. Quando se trata de ângulos e
movimento de câmera, “...e o Vento Levou” é bem convencional, sem a ambição de
se criar algo distinto ou inovador, e isso é típico de um filme completamente
dominado pelo produtor e estúdio. Passados os shots megalomaníacos, cujas ocorrências se dão em momentos
pré-determinados, o que resta é uma obra que não tem muito a oferecer em termos
de direção. Oportunidade perdida para o senhor Selznick, que não conseguiu
fazer com rios de dinheiro o que Orson Welles faria com uma fração da quantia
dois anos depois, em “Cidadão Kane”.
Assim, embora o escopo seja tremendo, o produto
entregue é muito aquém ao potencial. Os grandes cenários, o pano de fundo épico
(Guerra Civil e reorganização do Sul norte-americano) e a técnica em geral não
deveriam se sujeitar a uma história tão simplória (lembremo-nos: não passa de
um conto de amor guiado por uma mulher desprezível), mas é isso que acontece. “É como um gigantesco cofre guardando uma
única moeda”, como já disse certo crítico sobre outro filme3.
Nunca é bom sinal quando um grande filme pode
ser acidentalmente parodiado por um estudante de ensino médio, mas foi isso que
eu quase fiz com “...E o Vento Levou”. Apesar de suas virtudes e de sua ambição
a níveis fanáticos (que realmente impregna o espectador), ele possui inúmeras
seqüências, personagens e situações que hoje seriam facilmente descritas como over-the-top (ou “cafonas”, se
preferir). É um dizer comum que “...E o Vento Levou” só melhora com o passar do
tempo, e eu não poderia discordar mais. É uma obra interessante e de grande
importância histórica, sem dúvida, mas não vejo como alguém se apaixonaria por
ela, principalmente se esse alguém cultiva uma mentalidade realista e
pé-no-chão, com baixa tolerância a baboseiras românticas. Talvez seja por isso
que eu goste tanto de Rhett Butler: ele é a única mente sã em um oceano de
insanidades idealistas, e cada comentário mordaz que ele lança a seus
semelhantes são também críticas ao filme em si. Não que Margaret Mitchell ou os
roteiristas tivessem qualquer intenção disso, mas devemos exaltar felizes
coincidências toda vez que elas aparecem.
NOTA:
7,0
1 Espírito
livre? Nem tanto. Trata-se de uma mulher que não consegue viver sem um homem,
gemendo constantemente o nome de seu amado platônico Ashley e pulando de
casamento em casamento para manter as aparências e, claro, aumentar a conta
bancária;
2 Os biólogos
que me perdoem;
3 “A Árvore da Vida”, para os curiosos.
Considero um filmaço, mesmo que hoje a história de amor complicado possa parecer datada, ainda assim a força da história compensa.
ResponderExcluirCinemão de primeira qualidade.
Abraço
Obra-prima atemporal, de personagens fascinantes e inesquecíveis. Além de que Vivien Leigh é a responsável pela maior interpretação feminina da história do Cinema.
ResponderExcluirMas seu ponto de vista é até entendível, Diogo. Visto nos dias de hoje, o filme realmente soa brega e antiquado.
http://avozdocinefilo.blogspot.com.br/
Concordo com esta visão, que considero realista, deste clássico. É um filme belo, mas insosso e moralmente confuso. Abraço
ResponderExcluirhttp://onarradorsubjectivo.blogspot.pt/
Diogo, sinceramente, você entrou muito com sua visão ao ver e ler o filme.
ResponderExcluir1939, meu caro. 1939. Muita calma com desejos e expectativas que, no fim, se resumem a Anacronismo. Contexto sempre.