Inicio
hoje uma série de artigos comentando sobre os desafios do cinema no Séc. XXI -
e explicando porque sua indústria tem reagido muito mal a eles. Talvez dure
três, talvez dure vinte partes, não sei - este é um artigo que crescerá à
medida que me surgirem aspectos a comentar. Infelizmente, por enquanto, há
muitos. Existe aquele grupo de apocalípticos que gostam de cantar aos quatro
cantos da Terra que qualquer coisa (o cinema, a sociedade, os valores
morais...) está chegando ao fim, e que a geração atual assume o papel de
Anticristo. Isso, claro, é estupidez - durante toda a história, sempre houve um
grupo a reclamar que a geração seguinte estaria condenada. Como resumiu Orwell,
“as gerações de hoje sempre se acham melhores do que as gerações passadas e
mais sábias do que as que virão”. Ainda assim, há um elemento que torna dignas
de preocupação as dificuldades que o cinema - e as artes em geral - têm vivido
dos anos 90 para cá: nunca antes o mundo foi regido pela Ordem Digital. A
globalização, nesta fase caracterizada pela Internet, é um evento totalmente
inédito. Recorrer a uma análise histórica para apaziguar os ânimos e dizer “Ah,
não, isso é apenas uma fase!” talvez não funcione mais, pois nenhuma análise
contará com esta variante incômoda: a Internet veio para ficar, e é
radicalmente diferente de tudo que a humanidade já enfrentou. Ela é nosso fogo,
nossa roda, nossa Era do Gelo, nosso Monolito de “2001”. Nada que existiu antes dela seguirá intocado. A sociedade
mudará, os costumes mudarão, e o ineditismo deste evento nos tira qualquer
parâmetro de previsão.
A
segurança do cinema não está garantida. Talvez ele trilhe o mesmo caminho que o
teatro: uma arte que deixou de ser o centro do entretenimento para se tornar
uma diversão eventual e luxuosa. E eu já não tenho mais certeza de que ele
possa sair deste caminho.
A primeira pedra: o download
ilegal
Quando
comentam sobre o porquê do cinema se sair tão miserável em sua luta contra a
pirataria, as pessoas invariavelmente descambam no argumento de que “os jovens
de hoje são mesquinhos e não aceitam pagar nada por um DVD original, mesmo se
ele custasse um centavo!”. Este último período, aliás, eu ouvi de um crítico já
estabelecido no mercado. Este é o tipo de frase que acaba com discussões, tão
estúpida e rasa que é (não direi “sem fundamentos”, pois há certa lógica -
ainda que infantil - por trás dela). Primeiro, porque a mesquinharia está longe
de ser parte geração nascida a partir dos anos 2000 (apelidada de geração Z1)
- na verdade, o que preocupa é que ela é muito despreocupada com o dinheiro. Em uma era onde o carpe diem foi exaurido ao ponto de virar
YOLO, a preocupação é fazer com que estes jovens parem de gastar. A qualquer sinal de recompensa fácil, os jovens
torrarão rios de dinheiro - para desespero de seus pais, aos quais fica a
impossível missão de inculcar-lhes um mínimo de responsabilidade financeira.
Somos a geração mais gastona e despreocupada que se tem notícia. Não é que nós
não temamos o risco, aliás; o fato é que nós sequer reconhecemos sua
existência.
Por
que, então, essas máquinas de dinheiro não direcionam seus gastos também para o
DVD? Porque um jovem é capaz de matar por um ingresso de “Crepúsculo”2, mas não tem a mesma ânsia para comprar um
DVD do dito-cujo? Simples: o DVD, assim como todos os meios físicos de mídia,
perdeu sua utilidade. Ele é um incômodo sem virtudes salvadoras, e chega me
impressiono como a indústria se recusa a compreender isso. Assistir a um filme
através de um DVD se tornou uma odisséia injustificável, comparável aos
trâmites burocráticos de uma fundação pública. A indústria ainda segue o modelo
de que o DVD é o padrão de consumo doméstico de filmes e vídeos; errado: é o
arquivo digital.
O
download ilegal corrói o cinema com maior intensidade porque ele ainda está
preso a padrões de comércio dos anos 80. A indústria da música já conseguiu
compensar as constantes perdas com a distribuição digital (que representa a
maior parcela de seus lucros, aliás); os games,
há muito já inclusos no sistema colaborativo da era digital3, não
tiveram dificuldade para transferir suas vendas ao setor digital, ao ponto de
que os boxes físicos, após um ou dois
lotes, saem do mercado (penei para encontrar uma versão física de Diablo III). E quais os esforços do
cinema nesta área? Nulos, para dizer muito: não fossem as ações de iniciativas
privadas como iTunes e Netflix, que se sujeitam a longos e
intricados acordos com as distribuidoras, a indústria ainda estaria cega quanto
à importância dos downloads. Na verdade, suas ações sobre este mercado são tão
arrogantes que a escassez de títulos digitais é gritante. De resto, é a Lei de
Mercado: se um produtor falha em satisfazer o consumidor, o mesmo adota outro
fornecedor, mesmo que seja um ente fora-da-lei.
Mas
por que seria o DVD tão pior do que o arquivo bruto? Façamos uma comparação
simples: primeiro, temos João, um cinéfilo que não aceita passar um dia sem ver
um filme novo. João, sendo um brasileiro, terá apenas duas vias para satisfazer
seu desejo:
·
Baixar
ilegalmente o arquivo:
1. Sem
se levantar da cama, João acessa um site pirata em seu laptop e pesquisa o nome
do filme. Surgem dezenas de páginas de resultados; os outros usuários já
indicam os fornecedores mais confiáveis, então João não tem que se preocupar
com arquivos corruptos ou infestados de vírus;
2. Ele
clica em uma versão Blu-Ray (4,7 Gb) do filme e baixa-lhe o torrent; mesmo a uma taxa de downloads a
256 Kbps, ele terá o filme em umas 5 horas, tempo que ele pode aproveitar para
fazer qualquer outra coisa;
3. No
fim, dá dois cliques no arquivo baixado e assiste ao filme em alta definição na
tela de seu computador.
·
Alugar
um DVD: é bom que João tenha algum tempo livre, pois sair de
casa e caminhar até a locadora pode levar algum tempo.
1. Se
João for paulistano, provavelmente rezará antes para que não pegue um trânsito
cheio ou ruas lotadas até sua locadora de confiança, isso sem falar da
possibilidade de assaltos e outras amenidades. Se for aracajuano, João terá que
atravessar meia-cidade até chegar a uma locadora de qualidade um pouco acima
das expectativas;
2. Chegado
à locadora, João procura pelo filme. Aqui há três possibilidades:
i.
O
filme já está locado: tomara que nosso pobre João não tenha muita ânsia de
vê-lo, pois o filme que ele deseja só retornará n’outro dia, quando ele será
forçado a fazer todo o percurso à locadora novamente;
ii.
O
filme não existe: problema número um de quem procura filmes clássicos;
iii.
O
filme está disponível: em um DVD provavelmente surrado e de capa desgastada;
qualidade Blu-Ray? Só em alguns lançamentos que a locadora porventura tenha
adquirido. E, claro, pelo dobro do preço;
3. Após
pagar algo em torno de R$6,00 por um DVD de qualidade padrão e com as ranhuras
habituais do uso constante, João retorna a sua casa;
4. João
deseja assistir ao filme no computador, então insere o DVD. Das duas, uma: ou o
DVD travará (acontecimento constante em computadores novos, cujos leitores de
disco são muito sensíveis) ou funcionará. Apostemos na última, pois queremos
ver até onde se estende o sofrimento de João;
5. João
terá de lidar com um bombardeio de mensagens e menus até chegar ao filme:
primeiro, seleção do idioma do disco; depois, as mensagens básicas da
legislação, proibindo o filme de ser exibido em locais públicos, condenando a
pirataria e etc.; depois, propagandas da distribuidora (logomarca, próximos
lançamentos...); depois, o menu principal; depois, João seleciona os idiomas
(inglês, com legendas); depois, o filme. Considere, aliás, que muitas destas
etapas não são “puláveis”, então é provável que João perca cinco minutos para
chegar às vias de fato;
6. João
finalmente assiste ao filme, mas é provável que algum dos itens seguintes lhe
ocorra:
i.
O
DVD travará de quando em quando: bem que aquelas ranhuras
eram suspeitas!
ii.
O
DVD travará em algum ponto e interromperá o programa:
no caso de DVD’s corrompidos de forma mais severa. Não há nada mais a ser feito.
Game over.
Com
o download ilegal, João conseguiu, de graça, um produto de máxima qualidade4.
Pelas vias formais, João perdeu até uma hora e seis reais por um DVD padrão
cujas chances de pleno funcionamento não são garantidas. Sob qualquer perspectiva,
escolher um DVD é irracional: no ponto de vista econômico, você leva um produto
caro e sem qualidade; no ponto de vista cinéfilo, você não usufrui o melhor que
o filme pode oferecer, dada à qualidade do produto e o estresse em obtê-lo.
“Mas cinéfilos de verdade não se importam com
isso. Eles sempre escolhem o DVD!”. Esse é um discurso que se ouve
freqüentemente, como se o DVD, ou seja, o material físico fosse característica
primária de um verdadeiro apreciador do cinema. Não, não é. Não que aqueles que
defendem essa lógica não sejam cinéfilos. Eles são cinéfilos insensatos. Para justificar a própria
insensatez, aliás, eles nos vêm com outro argumento falacioso: “Você tem que comprar o DVD para suportar a
indústria. Sem isso, o cinema perderá dinheiro!”5. Para isso eu
respondo: não me importa. Não é culpa minha se a indústria cinematográfica não
consegue sequer projetar um rascunho para o mercado digital. Esse argumento
transfere para o consumidor o ônus da irresponsabilidade, como se nós
tivéssemos que carregar nas costas o peso do conservadorismo retardatário das
grandes produtoras. Quem prefere o estresse de alugar um DVD ao download, ainda
que ilegal, não está suportando o cinema; está suportando a incompetência.
E
os puristas que me perdoem, mas tentar proibir os downloads ilegais, agora, é
como criminalizar o sexo ou a respiração: qualquer lei do tipo já nascerá
inócua6. Se Hollywood, o coração industrial do cinema, perdesse
menos tempo com lobbies políticos para cercear os downloads e se concentrasse
em criar um sistema de distribuição mais atento à realidade, talvez a sua crise
fosse muito mais amena - ou até inexistente! A indústria fonográfica conseguiu
notáveis avanços na área (os lucros da música digital superaram os da convencional a nivel norte-americano e global); os games
seguem como a forma entretenimento mais pujante da atualidade, usufruindo as
vantagens de serem uma arte recém-nascida. Neste cenário, Hollywood parece um velho
resmungão que fica brigando com todos ao seu redor, sacolejando sua bengala e
apontando as culpas alheias, enquanto as demais indústrias seguem a vida,
algumas com certa dificuldade (música) e outras com a naturalidade típica de um
jovem diante de desafios (games).
1 O termo “geração
Y” já não se aplica mais, visto que é próprio daqueles nascidos nos anos 80/90 e
que já estão no mercado de trabalho;
2 Fazer o quê! A
realidade é o que é;
3 Tratarei disso
nos artigos futuros;
4 A desculpa de
que downloads não possuem qualidade e podem infectar o computador com vírus é
típica de quem nunca baixou um arquivo. Os usuários fornecem constantes feedbacks sobre a qualidade dos
produtos, indicando os mais confiáveis e os que devem ser evitados, e mesmo
antivírus gratuitos apontam arquivos suspeitos antes do download estar completo.
Em cinco anos de downloads constantes, nunca tive um único problema com vírus.
No máximo, baixei arquivos vazios ou errados;
5 No fim das
contas, o cinema nunca perderá dinheiro. Algumas indústrias perderão, mas o
cinema como um todo está além de questões monetárias. Para cada titã industrial
em crise, há milhares de pequenos produtores indie se valendo da criatividade e tomando o espaço da antiga ordem;
6 Tais leis já
existem em praticamente qualquer país do globo! Você, brasileiro, pode muito
bem ser preso por baixar ilegalmente um arquivo. Agora, o que resta é uma
questão de ordem prática: quando uma lei é constantemente desrespeitada por
todos os seus cidadãos, inclusive aqueles que deveriam reforçá-la (magistrados,
policiais...), ela é tão significativa quanto uma formiga esmagada nas páginas
do Código. Só que a formiga é fácil de remover.
Parabéns pelo tema da postagem.
ResponderExcluirVocê citou bem a questão das distribuidoras ainda pensarem como nos anos 80 na época da explosão do VHS. O problema hoje vai além, mistura ainda a questão financeira e da comodidade.
Cada vez mais o cinema se torna elitista. Os preços dos ingressos cada vez mais caros, junto com o absurdo preço das guloseimas (pipoca, chocolate, refrigerante) dentro dos cinemas, além do transporte.
O cinema segue o mesmo caminho de elitização que o futebol. Novas arenas e novos cinemas = a ingressos caros.
O brasileiro comum tem uma renda muito baixa e um nível de gastos alto. Estes com certeza vão preferir baixar um filme gratuitamente do que gastar no mínimo R$ 30,00 para ir ao cinema.
Outro fato é a tv a cabo, que agora oferece pacotes mais baratos (com poucos canais de qualidade por sinal). O sujeito tem filmes a disposição em casa o dia todo, porque gastar com cinema.
Abraço