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terça-feira, 4 de setembro de 2012

O Cinema & as pedras no caminho (II)



Tentemos estabelecer o período em que o cinema contemporâneo começou a se envolver na enrascada em que se encontra hoje: sem dúvida, um alerta soou por volta dos anos 1980, quando o fracasso colossal de “Heaven’s Gate” estabeleceu o fim da Era dos Diretores. Embora jamais se deva colocar o controle de uma arte completa e absolutamente nas mãos do artista, principalmente uma arte tão dependente da comercialização, o fim do reinado dos diretores não simbolizou qualquer reflexão organizada sobre os rumos da indústria, mas a substituição de um excesso (poder do diretor) por outro (poder do produtor). “Heaven’s Gate” foi, pondo de maneira simples, a oportunidade que os produtores e os estúdios tiveram para assumir a liderança do jogo e ditar suas regras, e tal transição foi tão desordenada como as revoluções da Primavera Árabe: agressivas, caóticas e cujos novos governos não são de uma laia muito melhor que a dos anteriores.

A partir dos anos 80, Hollywood, uma indústria essencialmente criativa, viu-se nas mãos de pessoas não-criativas: burocratas, economistas e empresários, todos com um controle exagerado de virtualmente tudo no processo fílmico, desde os argumentos para roteiros até a distribuição.  Foram os anos 90, porém, aqueles que determinaram a nítida erosão da qualidade hollywoodiana e de todos os núcleos cinematográficos fortemente comerciais: em 1999 surgiu o Napster, dando início ao irreversível domínio da pirataria digital. Sobre esse tema já tratamos no artigo anterior. O que eu desejo discutir hoje são os outros acontecimentos que levaram a uma brusca mudança do mercado de entretenimento; e esta, por sua vez, explica o comportamento errático do cinema comercial nos últimos 20 anos. Junto com a Internet, e talvez mais decisivos que ela, esses eventos foram a queda dos regimes socialistas e a ascensão dos mercados de “terceiro mundo”, hoje honrosamente nomeados “emergentes”.

Pedra II: navegando em águas misteriosas

1. Temível Novo Mundo

São duas coisas difíceis de ligar à Sétima Arte, eu sei. O fim dos grandes regimes socialistas teve seu estopim no ano de 1989, após a queda de um famoso muro e as reformulações políticas e econômicas da União Soviética; já a ascensão dos “emergentes” está ligada tanto a esse fenômeno quanto ao poderio chinês, que desde os anos 80 apresentara um espantoso crescimento econômico graças ás reformas administrativas que relaxaram o seu comunismo (ao menos na parte da economia). Esses dois eventos tiveram conseqüências nenhum pouco esperadas e tremendamente danosas para as potências ocidentais, tão tranqüilas em sua hegemonia: o mundo que antes estava divido voltara a ser uno, o que resultou em uma brusca abertura dos mercados ocidentais a bilhões de ex-socialistas ávidos por um pouco da prosperidade à la American Way of Life. Bilhões de trabalhadores famintos e altamente especializados graças à agenda comunista de educação e disciplina, capazes de realizar o mesmo trabalho que um ocidental por um preço muito mais camarada! Não é coincidência que a queda generalizada dos salários ocidentais e a queda do Muro de Berlim tenham muito a ver uma com a outra, e que a Grande Migração das indústrias ocidentais para as terras do oriente tenha se dado no mesmo período.

O socialismo não foi a maior ameaça para o mundo ocidental; o seu fim é que foi. Irônico, sem dúvida. Embebidas por algum senso primitivo de vitória, as potências ocidentais se perceberam tardiamente numa zona cada vez mais periférica da economia mundial. Se antes a indústria de cada nação era voltada principalmente para suas próprias fronteiras, com um grande conhecimento da cultura de seus consumidores, qual não foi a surpresa ao perceber que o mundo agora funcionava de modo unificado, e que pensar globalmente era tão ou mais importante do que localmente. Nesse ínterim, cada indústria procurou como pôde um jeito de se infiltrar nos novos mercados, e as produtoras cinematográficas ocidentais não ficaram de fora. Infelizmente, indústrias movidas pela criatividade artística são muito mais difíceis de se adaptar a novos mercados do que as mais técnicas.

Paralelamente, dentro do próprio ocidente, outra mudança populacional se desenrolava: enquanto a Geração Y amadurecia e ocupava os primeiros postos de trabalho no final dos anos 90 e início de 2000, uma nova e pobre geração crescia às sombras de um mundo caótico e sem fronteiras. É uma definição muito nova e que não conta com a unanimidade dos pesquisadores, mas cada vez se torna claro que esta nova geração (nascida a partir da segunda metade dos anos 90 e nos anos 2000), cujos integrantes mais velhos ainda estão na adolescência, carece dos desafios que moldaram o senso de responsabilidade e risco da Geração Y. Eu fiz uma breve menção deles no artigo anterior: trata-se da geração Z.

2. Jovens, mimados e sem limites

Embora a geração Y seja notoriamente mais tolerante aos riscos e mais avessa a uma “vida de escritório”, ela tem em si uma vantagem que inculca em seus integrantes certa noção de cautela e planejamento: ela ainda nasceu à sombra da Guerra Fria e menos exposta à revolução digital. Ainda que ela tenha vivido as grandes transformações do mundo em sua adolescência, sua infância foi marcada por valores relativamente conservadores; sem contar que seu pais, membros da chamada Geração X, ainda lhes incutiam noções de precaução financeira e apreço à comunidade. Essa combinação possibilitou que a Geração Y fosse uma “rebelde regrada”, cheia de jovens querendo muito mais da vida, mas com conhecimento dos riscos a que suas incursões podiam levar.

A geração Z, infelizmente, não possui esse luxo: nascidos quando a União Soviética já não era mais que um nome em livros aborrecidos de história, esses membros foram criados em um ambiente cujos valores locais são constantemente diluídos pela globalização e onde a conexão com o resto do mundo é prática, fácil e natural. A geração Y cresceu com o cinema rebelde, com os protestos hippies e as revoluções musicais do rock n’roll. A geração Z cresceu nos computadores e na internet, imersa em uma comunidade que perdia cada vez mais poder e identidade.

Mas era uma comunidade rica, ou com grande ilusão de riqueza: os anos 90 e 2000 foram palco das grandes explosões de crédito no ocidente, e o consumismo assumiu proporções ridículas, tais quais não se via desde os comerciais mais sem-vergonha do American Way of Life na década de 60. Ou seja, além de hiperconectada e sem padrões culturais distintos nos quais se ancorar, a Geração Z nasceu embalada por um consumismo irracional, crente de que qualquer coisa estava ao alcance do cartão de crédito dos pais. Crescia, dessa forma, uma massa de jovens culturalmente pouco exigente e carente dos valores que tanto moldaram as personalidades das gerações X (crise de 29, Guerras Mundiais e Guerra Fria) e Y (Guerra Fria e a contracultura ocidental).

Porque devemos nos preocupar com isso? Porque a Geração Z compõe uma fração expressiva (senão decisiva) do mercado consumidor ocidental.

3. São tempos estranhos...

“Transformers”, “Crepúsculo”, “Alvin & os Esquilos”, “Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros”, “High School Musical”. Em sua edição de 2010, o Oscar promoveu uma montagem com os principais filmes do ano usando um rap improvisado e imagens do filme “Eclipse”. E olhem que eu considero o cinema uma das áreas menos afetadas pela bizarrice dos últimos tempos. Se quiserem, podem encontrar exemplos em várias outras expressões de entretenimento: música (Justin Bieber, Lady Gaga, Katy Perry, Nicki ''Stupid Hoe'' Minaj...), literatura (“Crepúsculo”, “50 Tons de Cinza” e virtualmente todos os livros de auto-ajuda) e até mesmo os games (com os insuportáveis Facebook games). O que direi aqui será sobre o cinema, mas pode ser aplicado para o entretenimento como um todo.

O resultado das transformações dos anos 90 e 2000 foi um cinema cada vez menos ambicioso e menos conectado com as realidades locais; um cinema triturado e mastigado para se encaixar nos frágeis valores de uma geração sem grandes exigências. Mesmo os blockbusters supostamente “sérios” de hoje em dia (“Jogos Vorazes”, “Harry Potter & as Relíquias da Morte”...) não me parecem mais do que cópias emburrecidas, made-for-teens de obras muito mais respeitáveis (ainda não me sai da cabeça a noção de que o filme “Jogos Vorazes” não passa de um “1984 & Battle Royale for dummies”). O domínio dos produtores sobre os criadores também não oferece perspectivas de melhora, visto que são aqueles que tão desesperadamente adéquam o cinema aos gostos do público. A indústria do cinema deixou de ser uma formadora de opiniões e tendências para ser seguidora delas: identifica-se o que está na moda e faz-se a cópia.

É a velha constatação: os maiores sucessos do cinema atual são derivados de alguma outra obra (remakes, seqüências, adaptações...). O território do cinema comercial se tornou particularmente infértil para novas idéias, visto que elas têm que se adequar: 1) aos gostos deste novo mercado; 2) a valores mais amplos, menos polêmicos e fáceis de serem comercializados globalmente. Este último quesito é o resultado direto das transformações citadas na primeira seção deste artigo. Durante os anos de Guerra Fria, os mercados americano e europeu representavam quase toda a arrecadação dos filmes; a indústria conhecia o próprio terreno e conseguia emplacar, esporadicamente, ciclos de reinvenção e ousadia (as grandes “revoluções” fílmicas). Hoje tais ciclos são quase impossíveis, pois o mercado se abriu a ponto de abarcar o mundo inteiro, e o “politicamente correto” é meticulosamente calculado para que filmes não desagradem certos países de peso na arrecadação. E alguns desses países, como China e Índia, não são tão abertos às ousadias liberais que tanto marcaram o cinema dos anos 70 e 80.

Um pensamento fora de tópico: por que a Geração Z é tão afeita a obras do estilo das citadas no primeiro parágrafo? Embora eu não possa dar uma reposta segura, tenho minha opinião: por estarem severamente desprovidos de valores ou exemplos de vida, esses jovens se embalam em fantasias nada realistas e muitas vezes infantis. Falta muita noção a esses indivíduos sobre os elementos mais básicos da vida e, no lugar, eles escolhem substitutos toscos para cada um deles. Obras como “Crepúsculo” e “50 Tons de Cinza” seriam, desta forma, o modo primitivo destes jovens interpretarem o “amor” e a “sensualidade”; dois temas, aliás, que parecem uma obsessão em particular: acompanhando as letras de algumas músicas pop e os temas dos principais livros de auto-ajuda, vejo que a maioria deles são “lições” (se é que se pode chamar assim) de como se conseguir o “amor” (ou o que os jovens acham que ele seja). Enquanto cantores de rap exclamam o desejo por riqueza e mulheres (algo sempre do tipo “quero uma companheira linda e fiel” ou “várias companheiras fogosas e a perder de vista”), as mulheres, quando não tentam estabelecer a noção de independência e superioridade perante o sexo masculino, vivem chorando atrás do “Homem de Verdade” (ironicamente, alguém másculo, dominador e cafajeste).

Seria a Geração Z a mais carente e sexualmente frustrada de que se tem notícia?

4. Desiludidos

Se o cinema mainstream está curvado à Geração Z e aos mercados estrangeiros, o que resta aos membros da Geração X (hoje senis) e Y (recém-entrados no mercado de trabalho)? A decepção, nada mais. Na tentativa de se conectar ao mundo globalizado, o cinema se esqueceu de duas gerações ainda muito expressivas quantitativamente (e, mais importante: qualitativamente), que se contentam em observar, com uma ponta de mágoa, a transformação da Arte em uma pálida sombra do que um dia fora. Para a Geração X, ficam as freqüentes exclamações nostálgicas de que “nos outros tempos, era muito melhor” e que “os clássicos são melhores do que qualquer lançamento”. A geração Y, porém, é a que sofre mais por sua frustração, pois são pessoas de idades vigorosas e que assumiram os novos postos de trabalho no ocidente, mas que se vêem negadas pela inteligentsia do entretenimento tradicional. Muitos deles são cineastas que não conseguem um lugar na Grande Indústria, por terem ideias arriscadas ou “pouco vendáveis”, e que têm que se financiar de forma independente; não por coincidência, são os filmes indie os principais motores criativos do cinema atual.

Mas quando um titã cai, outro se levanta sobre seu cadáver. Os estratagemas desastrosos de Hollywood para se adequar aos novos tempos criaram um ambiente avesso a novos talentos, e estes são aproveitados por novos e improváveis tipos de indústrias. São essas indústrias, e não mais o cinema, os novos capitães do “entretenimento inteligente”. Mas essas são considerações para a próxima semana.

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