Tentemos estabelecer o período em
que o cinema contemporâneo começou a se envolver na enrascada em que se
encontra hoje: sem dúvida, um alerta soou por volta dos anos 1980, quando o
fracasso colossal de “Heaven’s Gate”
estabeleceu o fim da Era dos Diretores. Embora jamais se deva colocar o
controle de uma arte completa e absolutamente nas mãos do artista,
principalmente uma arte tão dependente da comercialização, o fim do reinado dos
diretores não simbolizou qualquer reflexão organizada sobre os rumos da
indústria, mas a substituição de um excesso (poder do diretor) por outro (poder
do produtor). “Heaven’s Gate” foi, pondo de maneira simples, a oportunidade que
os produtores e os estúdios tiveram para assumir a liderança do jogo e ditar
suas regras, e tal transição foi tão desordenada como as revoluções da
Primavera Árabe: agressivas, caóticas e cujos novos governos não são de uma
laia muito melhor que a dos anteriores.
A partir dos anos 80, Hollywood, uma
indústria essencialmente criativa, viu-se nas mãos de pessoas não-criativas:
burocratas, economistas e empresários, todos com um controle exagerado de
virtualmente tudo no processo fílmico, desde os argumentos para roteiros até a
distribuição. Foram os anos 90, porém,
aqueles que determinaram a nítida erosão da qualidade hollywoodiana e de todos
os núcleos cinematográficos fortemente comerciais: em 1999 surgiu o Napster,
dando início ao irreversível domínio da pirataria digital. Sobre esse tema já
tratamos no artigo anterior. O que eu desejo discutir hoje são os outros acontecimentos que levaram a uma
brusca mudança do mercado de entretenimento; e esta, por sua vez, explica o
comportamento errático do cinema comercial nos últimos 20 anos. Junto com a
Internet, e talvez mais decisivos que ela, esses eventos foram a queda dos
regimes socialistas e a ascensão dos mercados de “terceiro mundo”, hoje
honrosamente nomeados “emergentes”.
Pedra II: navegando em águas misteriosas
1. Temível Novo Mundo
São duas coisas difíceis de ligar à
Sétima Arte, eu sei. O fim dos grandes regimes socialistas teve seu estopim no
ano de 1989, após a queda de um famoso muro e as reformulações políticas e
econômicas da União Soviética; já a ascensão dos “emergentes” está ligada tanto
a esse fenômeno quanto ao poderio chinês, que desde os anos 80 apresentara um
espantoso crescimento econômico graças ás reformas administrativas que
relaxaram o seu comunismo (ao menos na parte da economia). Esses dois eventos
tiveram conseqüências nenhum pouco esperadas e tremendamente danosas para as
potências ocidentais, tão tranqüilas em sua hegemonia: o mundo que antes estava
divido voltara a ser uno, o que resultou em uma brusca abertura dos mercados
ocidentais a bilhões de ex-socialistas ávidos por um pouco da prosperidade à la
American Way of Life. Bilhões de
trabalhadores famintos e altamente especializados graças à agenda comunista de
educação e disciplina, capazes de realizar o mesmo trabalho que um ocidental
por um preço muito mais camarada! Não é coincidência que a queda generalizada
dos salários ocidentais e a queda do Muro de Berlim tenham muito a ver uma com
a outra, e que a Grande Migração das indústrias ocidentais para as terras do
oriente tenha se dado no mesmo período.
O socialismo não foi a maior ameaça
para o mundo ocidental; o seu fim é que foi. Irônico, sem dúvida. Embebidas por
algum senso primitivo de vitória, as potências ocidentais se perceberam
tardiamente numa zona cada vez mais periférica da economia mundial. Se antes a
indústria de cada nação era voltada principalmente para suas próprias
fronteiras, com um grande conhecimento da cultura de seus consumidores, qual
não foi a surpresa ao perceber que o mundo agora funcionava de modo unificado,
e que pensar globalmente era tão ou mais importante do que localmente. Nesse
ínterim, cada indústria procurou como pôde um jeito de se infiltrar nos novos
mercados, e as produtoras cinematográficas ocidentais não ficaram de fora.
Infelizmente, indústrias movidas pela criatividade artística são muito mais
difíceis de se adaptar a novos mercados do que as mais técnicas.
Paralelamente, dentro do próprio
ocidente, outra mudança populacional se desenrolava: enquanto a Geração Y
amadurecia e ocupava os primeiros postos de trabalho no final dos anos 90 e
início de 2000, uma nova e pobre geração crescia às sombras de um mundo caótico
e sem fronteiras. É uma definição muito nova e que não conta com a unanimidade
dos pesquisadores, mas cada vez se torna claro que esta nova geração (nascida a
partir da segunda metade dos anos 90 e nos anos 2000), cujos integrantes mais
velhos ainda estão na adolescência, carece dos desafios que moldaram o senso de
responsabilidade e risco da Geração Y. Eu fiz uma breve menção deles no artigo
anterior: trata-se da geração Z.
2. Jovens, mimados e sem limites
Embora a geração Y seja notoriamente
mais tolerante aos riscos e mais avessa a uma “vida de escritório”, ela tem em
si uma vantagem que inculca em seus integrantes certa noção de cautela e planejamento:
ela ainda nasceu à sombra da Guerra Fria e menos exposta à revolução digital.
Ainda que ela tenha vivido as grandes transformações do mundo em sua
adolescência, sua infância foi marcada por valores relativamente conservadores;
sem contar que seu pais, membros da chamada Geração X, ainda lhes incutiam
noções de precaução financeira e apreço à comunidade. Essa combinação
possibilitou que a Geração Y fosse uma “rebelde regrada”, cheia de jovens
querendo muito mais da vida, mas com conhecimento dos riscos a que suas
incursões podiam levar.
A geração Z, infelizmente, não
possui esse luxo: nascidos quando a União Soviética já não era mais que um nome
em livros aborrecidos de história, esses membros foram criados em um ambiente
cujos valores locais são constantemente diluídos pela globalização e onde a
conexão com o resto do mundo é prática, fácil e natural. A geração Y cresceu
com o cinema rebelde, com os protestos hippies e as revoluções musicais do rock
n’roll. A geração Z cresceu nos computadores e na internet, imersa em uma
comunidade que perdia cada vez mais poder e identidade.
Mas era uma comunidade rica, ou com
grande ilusão de riqueza: os anos 90 e 2000 foram palco das grandes explosões
de crédito no ocidente, e o consumismo assumiu proporções ridículas, tais quais
não se via desde os comerciais mais sem-vergonha do American Way of Life na década de 60. Ou seja, além de hiperconectada
e sem padrões culturais distintos nos quais se ancorar, a Geração Z nasceu
embalada por um consumismo irracional, crente de que qualquer coisa estava ao
alcance do cartão de crédito dos pais. Crescia, dessa forma, uma massa de
jovens culturalmente pouco exigente e carente dos valores que tanto moldaram as
personalidades das gerações X (crise de 29, Guerras Mundiais e Guerra Fria) e Y
(Guerra Fria e a contracultura ocidental).
Porque devemos nos preocupar com
isso? Porque a Geração Z compõe uma fração expressiva (senão decisiva) do
mercado consumidor ocidental.
3. São tempos estranhos...
“Transformers”, “Crepúsculo”, “Alvin
& os Esquilos”, “Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros”, “High School
Musical”. Em sua edição de 2010, o Oscar promoveu uma montagem com os
principais filmes do ano usando um rap improvisado e imagens do filme
“Eclipse”. E olhem que eu considero o cinema uma das áreas menos afetadas pela
bizarrice dos últimos tempos. Se quiserem, podem encontrar exemplos em várias
outras expressões de entretenimento: música (Justin Bieber, Lady Gaga, Katy
Perry, Nicki ''Stupid Hoe'' Minaj...), literatura (“Crepúsculo”, “50 Tons de Cinza” e
virtualmente todos os livros de auto-ajuda) e até mesmo os games (com os
insuportáveis Facebook games). O que
direi aqui será sobre o cinema, mas pode ser aplicado para o entretenimento
como um todo.
O resultado das transformações dos
anos 90 e 2000 foi um cinema cada vez menos ambicioso e menos conectado com as
realidades locais; um cinema triturado e mastigado para se encaixar nos frágeis
valores de uma geração sem grandes exigências. Mesmo os blockbusters supostamente “sérios” de hoje em dia (“Jogos Vorazes”,
“Harry Potter & as Relíquias da Morte”...) não me parecem mais do que
cópias emburrecidas, made-for-teens
de obras muito mais respeitáveis (ainda não me sai da cabeça a noção de que o
filme “Jogos Vorazes” não passa de um “1984
& Battle Royale for dummies”). O domínio dos produtores sobre os
criadores também não oferece perspectivas de melhora, visto que são aqueles que
tão desesperadamente adéquam o cinema aos gostos do público. A indústria do
cinema deixou de ser uma formadora de opiniões e tendências para ser seguidora
delas: identifica-se o que está na moda e faz-se a cópia.
É a velha constatação: os maiores
sucessos do cinema atual são derivados de alguma outra obra (remakes, seqüências, adaptações...).
O território do cinema comercial se tornou particularmente infértil para novas
idéias, visto que elas têm que se adequar: 1) aos gostos deste novo mercado; 2)
a valores mais amplos, menos polêmicos e fáceis de serem comercializados
globalmente. Este último quesito é o resultado direto das transformações
citadas na primeira seção deste artigo. Durante os anos de Guerra Fria, os
mercados americano e europeu representavam quase toda a arrecadação dos filmes;
a indústria conhecia o próprio terreno e conseguia emplacar, esporadicamente,
ciclos de reinvenção e ousadia (as grandes “revoluções” fílmicas). Hoje tais
ciclos são quase impossíveis, pois o mercado se abriu a ponto de abarcar o
mundo inteiro, e o “politicamente correto” é meticulosamente calculado para que
filmes não desagradem certos países de peso na arrecadação. E alguns desses
países, como China e Índia, não são tão abertos às ousadias liberais que tanto
marcaram o cinema dos anos 70 e 80.
Um pensamento fora de tópico: por que a Geração Z é tão afeita a obras do
estilo das citadas no primeiro parágrafo? Embora eu não possa dar uma reposta
segura, tenho minha opinião: por estarem severamente desprovidos de valores ou
exemplos de vida, esses jovens se embalam em fantasias nada realistas e muitas
vezes infantis. Falta muita noção a esses indivíduos sobre os elementos mais
básicos da vida e, no lugar, eles escolhem substitutos toscos para cada um
deles. Obras como “Crepúsculo” e “50 Tons de Cinza” seriam, desta forma, o modo
primitivo destes jovens interpretarem o “amor” e a “sensualidade”; dois temas,
aliás, que parecem uma obsessão em particular: acompanhando as letras de
algumas músicas pop e os temas dos principais livros de auto-ajuda, vejo que a
maioria deles são “lições” (se é que se pode chamar assim) de como se conseguir
o “amor” (ou o que os jovens acham que ele seja). Enquanto cantores de rap
exclamam o desejo por riqueza e mulheres (algo sempre do tipo “quero uma
companheira linda e fiel” ou “várias companheiras fogosas e a perder de
vista”), as mulheres, quando não tentam estabelecer a noção de independência e
superioridade perante o sexo masculino, vivem chorando atrás do “Homem de
Verdade” (ironicamente, alguém másculo, dominador e cafajeste).
Seria a Geração Z a mais carente e
sexualmente frustrada de que se tem notícia?
4. Desiludidos
Se o cinema mainstream está curvado à Geração Z e aos mercados estrangeiros, o
que resta aos membros da Geração X (hoje senis) e Y (recém-entrados no mercado
de trabalho)? A decepção, nada mais. Na tentativa de se conectar ao mundo
globalizado, o cinema se esqueceu de duas gerações ainda muito expressivas
quantitativamente (e, mais importante: qualitativamente), que se contentam em
observar, com uma ponta de mágoa, a transformação da Arte em uma pálida sombra
do que um dia fora. Para a Geração X, ficam as freqüentes exclamações
nostálgicas de que “nos outros tempos, era muito melhor” e que “os clássicos
são melhores do que qualquer lançamento”. A geração Y, porém, é a que sofre
mais por sua frustração, pois são pessoas de idades vigorosas e que assumiram
os novos postos de trabalho no ocidente, mas que se vêem negadas pela inteligentsia do entretenimento
tradicional. Muitos deles são cineastas que não conseguem um lugar na Grande
Indústria, por terem ideias arriscadas ou “pouco vendáveis”, e que têm que se
financiar de forma independente; não por coincidência, são os filmes indie os principais motores criativos do
cinema atual.
Mas quando um titã cai, outro se
levanta sobre seu cadáver. Os estratagemas desastrosos de Hollywood para se
adequar aos novos tempos criaram um ambiente avesso a novos talentos, e estes
são aproveitados por novos e improváveis tipos de indústrias. São essas
indústrias, e não mais o cinema, os novos capitães do “entretenimento
inteligente”. Mas essas são considerações para a próxima semana.
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