Respirem
fundo, pois a comparação será tosca: “Dredd” é para os filmes o que Tiririca é
para a política – um exemplar com todas as chances pesando contra si na
balança, sem qualquer prognóstico favorável, mas que vence todas as
desconfianças e entrega ótimos resultados. Tosca, sim, mas é a comparação
ideal. Alguma coisa já indicava que “Dredd” seria algo superior à média quando
o vi sendo avaliado e criticado muito antes de seu lançamento comercial. A
produção estava tão confiante em sua proeza artística que resolveu dar a cara à
tapa aos críticos do mundo, colhendo ótimos resultados. É um ato de coragem
cada vez mais raro, e apesar de “Dredd” ser uma aventura, em teoria,
estritamente comercial, ele consegue alcançar muito mais do que espera sua
natureza, com algumas sacadas – sou forçado a admitir – de audácia admirável.
A
primeira vista, o filme traz uma clara inspiração do cinema de Christopher
Nolan, com seu realismo pulsante e seu tom levemente pessimista. Isso não é
nada bom: como qualquer tendência ou “modinha”, há uma profusão de obras que
seguem versões chulas desse “realismo Nolaniano”, como se a imitação fosse
garantia da qualidade. Portanto, pé atrás para “Dredd”. Felizmente, ele se
esquiva dessa armadilha – como se esquiva de muitas outras – e entende direito
que o realismo vai muito além de uma fotografia escura ou um final triste: está
em agregar os pequenos detalhes, a construção dos personagens e a consistência
da história e fazer com que todos reflitam a realidade do público que a assiste.
Essa conexão, que deixa um gostinho incômodo de que o que está na tela também
faz parte de nossas vidas, é o que 95% dos filmes “sérios” de hoje em dia não
têm. É um prazer constatar que “Dredd” está entre os 5%. Pé para frente!
Um
breve resumo da ópera: o filme é uma adaptação da homônima história em
quadrinhos (não muito popular por essas bandas, de fato) e um remake da bizarra versão cinematográfica
protagonizada por Arnold “Hasta La Vista” Schwarzenegger Sylvester Stalone. Em uma América
distópica e devastada por bombas nucleares (ok, clichê), a humanidade vive
agregada em Mega Cidades, colossos urbanos exagerados, mas estranhamente
críveis. Nelas, a justiça è mantida a duras penas pelos Juízes – policiais
anabolizados cujos poderes compreendem os de um juiz, um júri e um executor – e
é aplicada sobre um sistema automático e inflexível. Na Mega Cidade Um, o
famoso Juiz Dredd fica responsável por uma novata cujos poderes psíquicos podem
dar alguma vantagem ao capenga sistema policial; logo em seu primeiro caso, eles
perturbam uma sádica criminosa, que ordena sua execução e, para isso, tranca-os
no Mega Bloco (um prédio de 75.000 habitantes) sob seu comando.
A
partir de seu décimo quinto ou vigésimo minuto em diante, o filme todo se
desenvolve apenas neste espaço, deixando para trás a imensa Mega Cidade Um e
focando-se na ação controlada e no jogo de personagens e eventos. Deixando de
lado motivos de orçamento, ambição artística ou mero pragmatismo comercial, o
importante é que “Dredd” evita o erro de tentar abarcar o mundo com os pés e de
terminar como o sapo orgulhoso que engoliu a si mesmo. O simples fato de
restringir personagens tão fascinantes (e improváveis) a um espaço
limitadíssimo já revela uma coragem intimidadora e mostra quão desafiadores
foram os planos que a produção se auto-impôs. Os obstáculos são os mesmos de
“12 Homens e uma Sentença” (como desenvolver uma ação convincente em um espaço
mínimo) e o resultado é semelhante a filmes como “Aliens” – ou seja, uma
experiência bem sucedida.
O
tom geral, porém, parece não o de um filme propriamente dito, mas de um
“exercício conceitual”. A obra chega ao público embalada em um formato super
comercial, com a enxuta duração de uma hora e meia e um rimo no qual nem os
créditos finais são passados com calma. Fica a sensação de que a equipe do
longa, por melhor que tenha se saído com o material entregue, queria realizar
algo muito maior do que o que de fato pôde. Ainda assim, o filme nunca parece
“corrido demais”; sua montagem é consistentemente ágil, com apenas alguns
deslizes (a cena em que Dredd e Anderson invadem o andar da mafiosa Ma-Ma e, em
menos de vinte segundos, matam todos os capangas presentes a capturam a
poderosa chefona). Durante toda a película há um gosto de “quero mais”, e não
sei exatamente se isso foi intencional ou não.
O
roteiro é, sim, responsável pelos maiores triunfos do filme (a parte técnica
magnífica1 e o auto-controle fantástico de seu diretor não ficam
muito atrás, aliás), mas isso não o impede de trazer, também, os maiores
problemas da obra. As falhas de lógica se aglomeram a um ponto de não poderem
ser salvas pela suspensão da descrença. Por exemplo: quando Dredd e Anderson
conseguem recobrar comunicações com a Central de Justiça, porque raios eles não
informaram de uma vez tudo que estava acontecendo, ao invés de deixar os
colegas com a falsa impressão de que tudo não passava de uma “batida rotineira”
(um erro que, se evitado, provavelmente acabaria com a dor de cabeça deles
naquele exato instante). Outra: quando Anderson é capturada por Ma-Ma, porque
ela não usou seus poderes psíquicos para destruir, ou ao menos despistar, a
chefona, já que a vimos usar a mesma tática em outro marginal? Ou uma mais
grave: temos a cena em que Dredd, após uma louca execução em massa promovida
pela mafiosa, aparece bem em frente dela e joga um de seus capatazes prédio
abaixo, numa clara demonstração de força. Embora a intenção da cena fosse ser
“fodástica”, no melhor estilo dos pipocões dos anos 80, o Juiz simplesmente
perdeu uma chance de ouro de acabar com toda a confusão: porque ele não sacou
sua arma multiuso e atirou na dita-cuja?! Neste caso, o estilo superou o bom
senso, e o mesmo seria feito várias vezes para prolongar uma história que, se
seus personagens fossem um pouco mais espertos, não passaria de quarenta e
cinco minutos.
Artisticamente,
o filme também tem uma recaída “Zack Snyder” e faz uso constante (mas não
excessivo, devo admitir) do slow-motion. A justificativa é que tudo é efeito de
uma droga produzida por Ma-Ma, que dá ao cérebro a impressão do tempo se passar
a 1% da velocidade normal. Como podem ver, esta é a droga mais conveniente de
todos os tempos no que tange a propósitos fotográficos. Na verdade, o próprio
nome da bendita é SLO-MO! Aplausos para a sutileza! Por mais que tente, o filme
não consegue esconder o fato de que uma droga assim só foi concebida por
motivos estéticos (há um vídeo promocional inteiro dedicado ao slow-motion).
Primeiro, porque o efeito em si é, convenhamos, brega – exatamente como o 3D2:
interessante nos cinco primeiros minutos e muito enjoado nos demais. Segundo,
porque o uso da droga não faria sentido na vida real. Se as drogas, em “Dredd”
(e também neste mundo), são tomadas para se escapar da dor, porque o Slo-Mo
também é usado em torturas? Na lógica do filme, se o cérebro percebe tudo mais
lentamente, as torturas seriam ainda mais agonizantes – e é isso que Ma-Ma faz
ao executar seus desafetos. Então porque alguém a tomaria? Na prática, ela não
distrairia as pessoas de seus sofrimentos físicos ou psicológicos; como o filme
bem mostra, ela só os prolonga! Por pior que seja esse futuro apocalíptico, eu
duvido que todos os seus cidadãos tenham inclinações tão sado-masoquistas.
Problemas
à parte, “Dredd” é bem feito ao ponto não só de fazer seu mundo over-the-top parecer convincente como
também de inspirar reflexões profundas, pelo menos para quem estiver disposto a
fazê-lo. Uma delas seria a validade de um sistema legal “automático”, onde todo
o poder jurisdicional cairia na mão de uma única pessoa, e a lei seria seguida
de maneira cega e impiedosa. Seria esse sistema realmente correto, mesmo que em
uma sociedade tão torta quanto a do filme? Outra é a banalização, ou melhor, o
embelezamento da violência. Novamente, tenho que dar o braço a torcer: “Dredd”
é tão descarado em sua violência que, se Quentin Tarantino estivesse
assistindo, o diretor-pop balançaria a cabeça para cima e para baixo com um
sorriso de graciosa aprovação. Vemos corpos sendo despedaçados no referido
slow-motion com um detalhamento quase estúpido; o resultado não é a repulsa,
mas uma sincera apreciação daquela estranha beleza construída com sangue, pele
e ossos. Estaria o filme criticando nossa sociedade e seu amor pela violência?
Não
irei me alongar nestas ou em quaisquer outras “discussões filosóficas”, tanto
porque elas não são intrínsecas ao filme. Assim como em meu recém-avaliado
“Robocop”, “Dredd” é despretensioso o suficiente para que elas sejam um item
totalmente opcional. Só que o simples fato de ele POSSIBILITAR tais reflexões deixa
claro o seu triunfo. Você pode não sair do cinema filosofando ou com a moral
seriamente questionada depois deste filme, mas posso garantir que terá se
divertido como pouquíssimas vezes neste ano!
NOTA: 8,0
1Os efeitos visuais desta
obra me nocautearam. Durante as cenas aéreas, com a câmera observando a Mega
Cidade Um, eu só conseguia pensar em um “Blade Runner diurno”. E considerando
que “Blade Runner” é o filme, para mim, com os melhores efeitos visuais de
todos os tempos, isso não é dizer pouco;
2Falo aqui de modo geral,
pois vi o filme no meu velho e querido 2D.
Fiquei sem palavras.
ResponderExcluirLi pouco sobre o filme e conheço o personagem apenas em seus encontros com Batman nos quadrinhos, pois o filme anterior não é válido, de tão ruim na minha opinião.
Gostei muito de seu texto e me inspirei a assistir no final de semana.
A crítica anda falando bem do filme e seu texto vai na mesma direção. Talvez veja no próximo fim de semana.
ResponderExcluirarnold???? Silvester Stalone filha
ResponderExcluirObrigado pela correcao. Nunca consigo falar do primeiro Dredd sem trocar os nomes.
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