A idéia com a qual “Detona Ralph” foi concebido
- uma aventura no mundo dos videogames,
com personagens e franquias reais - seria ótima não fosse o estado das coisas
em Hollywood. Meu pessimismo - corrijo: “realismo” - inato guiou-me à opinião
contrária: que a animação seria apenas mais um pequeno lixo comercial, com o
agravante de profanar personagens queridos do mundo gamer. Fazer o quê. O cinema comercial moderno caminha a largos
passos em direção a uma refinaria de esterco, com a exceção de que do esterco
nascem coisas boas. Primeiro, trata-se de uma animação solo da Disney, uma
empresa já bem distante do brilhantismo de outrora (ah, também guardo ressalvas
com a Pixar, que parece ter iniciado seu declínio). Segundo, é sempre mais
provável que os produtores (e os da Disney são notoriamente gananciosos,
perdendo apenas para os da Twentieth
Century Fox) não possuíssem o menor conhecimento ou mesmo gosto por games,
usando seus personagens apenas para criar um produto atraente e poderem posar
de “moderninhos”. “Vejam, nós fizemos um
filme com games! Olha como somos descolados!”
Alegrai-vos, cinéfilos: é uma desconfiança não
correspondida. “Detona Ralph” é uma homenagem sincera de quem entende e adora games, não um mero produto tentando
ganhar uns trocados a mais. Cada referência é bem planejada, cada sacada vai do
engraçado ao genial, cada momento em que o Sonic ou o Ryu aparecem na tela é
esperto, para leigos como eu, ou verdadeiramente emocionante, para os fãs.
Assim, “Detona Ralph” se aproxima de (e, em minha opinião, supera1) “Uma Cilada para Roger Rabbit”, no sentido de reunir grandes nomes de um meio de
entretenimento (“Ralph” trás games
enquanto “Rabbit” trazia cartoons) em
prol de uma história inventiva e - por que não? - um belo fan service. Não fosse o argumento para tais filmes, é provável que
tal confluência de personagens (leia-se: royalties) jamais acontecesse. Ora,
até hoje Mickey Mouse e o perna-longa nunca mais se encontraram em uma produção
oficial. E me diga: em que outra ocasião você verá Chun-Li, Princesa Peach e
Zelda2 conversando em grupo, como meninas adolescentes trocando
fofocas?
Sim, sim, sim: esse filme é também um paraíso
dos detalhes! Em minha última crítica falei sobre a Aardman, uma produtora com
atenção imensa às mínimas coisas. Pois bem, aqui a Disney supera a velha
inglesa das massinhas, e exponencialmente: se você gosta de procurar easter eggs, prepare-se para um orgasmo
nas cenas da Estação dos Videogames - onde MILHARES de personagens agem no background - ou nos momentos em que
tenta adivinhar quais são as paródias dos games fictícios criados pela Disney
(o “Conserta Félix” se aproxima do primeiro “Donkey Kong”, e o nome “Hero’s
Duty” é bem óbvio). E um quarto “sim”: isso é um paraíso para piadas,
referências, trocadilhos e quaisquer caraminholas divertidas que puderem ser
postas em um bom roteiro.
Roteiro que, aliás, é ótimo, ainda que um tanto
complicado para crianças. Não digo que ele seja “inteligente demais” para os
pequeninos, não. Ele é mesmo muito complexo, lidando com vários elementos
simultâneos sobre os quais mesmo eu, um adulto razoavelmente atento, tive
dificuldade de manter a atenção. Não sou de resumir um filme em meus textos
(afinal, sinopses existem por um motivo), mas abro uma exceção apenas para
mostrar o quadro geral: começamos com Ralph, um vilão bem sucedido mas
imensamente insatisfeito com a vida que têm. Também! Ele vive isolado em um
lixão e hostilizado pelos companheiros de jogo, que jamais percebem sua
importância vital até que ele decide trocar de jogo para ganhar uma medalha de
herói. Ele vai parar no “Hero’s Duty”, um shoot-em-all
moderno figurando insetos mutantes como inimigos. Após algumas trapalhadas, ele
consegue a medalha mas vai parar em outro jogo, o “Sugar Rush” (pense nos games
licenciados pela marca “Moranguinho”, só que com mais carisma). Lá, uma menina
(que, na verdade, é um “bug”) rouba a
medalha, pois esta se parece com uma das “medalhas douradas” necessárias para
que ela compita formalmente em seu jogo (afinal, bugs não devem aparecer). Entretanto, Ralph trouxe consigo um dos
insetos do jogo anterior, que agora age como um vírus capaz de destruir todo o
fliperama. Nesse ínterim, Ralph tem que ajudar a menina a ganhar a corrida para
recuperar a medalha e... bem, daí em diante o emaranhado fica tão grande que
supera as minhas habilidades de síntese, com direito a uma conspiração entre
jogos e várias - eu digo VÁRIAS - reviravoltas!
Roteiros muito entulhados geralmente são
indícios de que o roteirista é incapaz de manter uma linha de raciocínio ou de
escrever uma história simples. Mas aqui, é uma “bagunça justificada”. A obra
maneja seus vários elementos, personagens e plot
twists com elegância, jamais se esquecendo do mundo que se propõe a
homenagear. O que temos, portanto, é um argumento plenamente justificado e um
filme maravilhosamente executado, quase magistral em alguns momentos. Os
personagens, que poderiam facilmente cair na estereotipagem, são redondos,
surpreendentemente profundos e infinitamente carismáticos. Da heroína durona ao
secundário Félix... céus, até mesmo aos figurantes, todos são muito divertidos
de se ver e, em última instância, apaixonantes (creio que a Sargento Tamora
seja meu mais novo crush fictício -
adeus, Alyx Vance). Que exemplo melhor de um personagem bem escrito do que
Vanellope, o bug cuja voz e trejeitos
tinham tudo para ser insuportáveis, mas que acabam fascinantes?
Sargento Tamora. Err... essa é uma imagem completamente aleatória.
Aqui, devo falar sobre a dublagem brasileira.
Assim como em “Os Muppets”, só que em menor grau, a dublagem brazuca é fonte de
muitos momentos vergonha-alheia, péssimo timing,
pouco realismo ou pura e simples tosquice. Dá um nó no coração ouvir expressões
como “A cobra vai fumar” ou “Melou” no lugar de “Oh, boy, shit’s going down” ou “Fuck”
3. O problema é potencializado por um roteiro que, na versão original,
faz extensivo uso de trocadilhos ou diálogos ágeis levemente nonsense - um terror para os sempre
atarefados e afobados dubladores brasileiros. É a coisa mais estranha do mundo
ouvir a durona (e forte, e decidida, e delgada, e sexy... ai, meu coração4)
Tamora dizendo “Muita gente fica tão cega
pelo egoísmo que nunca vê o bicho-papão por perto” (aliás, a personagem é a
que tem, na versão brasileira, a maior coleção de one liners bizarros). E ouvir Zangief com um sotaque russo
claramente forçado... ah, façam-me o favor!
Na versão dublada, se assiste “apenas” a um
grande filme. No original, não duvido que ele se aproxime do nível
“excepcional”. De qualquer forma, não foi dessa vez que os dubladores arruinaram
mais uma produção, e o resultado continua de alto nível.
Há também muita carga emotiva aqui, e mesmo uma
reflexão que, se não chega aos níveis de ouro da Pixar, ao menos é intrigante.
Os relacionamentos entre os personagens, especialmente entre Ralph e Vanellope,
realmente mexem com o público, ao ponto em que cenas mais pesadas - como quando
Ralph destrói o carro de corrida da pequena - DE FATO provocam sentimentos
fortes. “Detona Ralph” passa uma mensagem que pouco vemos nas produções
infantis atuais, tão ocupadas em papaguear a mesma baboseira de sempre (“ame o
próximo”, “aprenda a compartilhar”, etc.). A “moral” central, por trás da
igualmente bem trabalhada mensagem de “seja você mesmo”, é como o egoísmo,
ainda que motivado por nobres intenções, pode gerar conseqüências
catastróficas. Num mundo onde as crianças são quase mini-adultos, é um lembrete
muito bem vindo. E não se preocupe: todas essas mensagens são trabalhadas com a
sutileza e a naturalidade esperadas dos bons filmes, o que nos leva a
desconfiar se a Pixar não teve algo por trás da obra. Ah, sim, ela teve: John
Lasseter é o produtor executivo.
Tão nostálgico quanto bem feito, “Detona Ralph”
é imperdível. Alia comédia, aventura e graça com uma sentimentalidade que em
muito supera a do curta que o precede, o bonitinho (e só) “Paperman”. Talvez a
segunda melhor animação de 2012 (os Estúdios Ghibli ganham o pódio, pra variar,
com o maravilhoso “Arriety”), essa
grande e sincera homenagem aos videogames
- um meio artístico5 que já supera o cinema em lucros e, quem sabe,
qualidade - nos leva a refletir se estes já não estão ocupando o centro das
atenções como a mais nova e badalada expressão artística do mundo. Eu não sei,
mas quando os filmes passam a prestar tributos a um meio de entretenimento
visto como não mais do que um mero passatempo há poucos anos, é sinal de que os
tempos estão mudando. E pra melhor.
NOTA:
8,5
1 Nunca fui um fã da obra de Zemeckis;
2 Não sei bem se era a Zelda, visto que era um detalhe minúsculo de cena,
só aparecendo por alguns segundos. Além do mais, não sou expert em games. Quem puder me corrigir, por favor o faça;
3 Sei que a versão original não as usa, mas é só para dar uma idéia;
4 Se é que há uma bizarrice no físico da personagem, essa é o rosto. Os
movimentos e os traços são muito similares aos de Cruela Devil, do desenho
animado “101 Dálmatas”. Não sei se isso funciona como um turn on ou um turn off;
5 Videogames SÃO arte. Creio não haver mais discussão neste tópico.
Amei o trailer do filme e adorei seu texto....seu primeiro parágrafo me deixou angustiado.....será que o filme seria ruim?
ResponderExcluirainda bem que sua sensação foi diferente e o filme mereceu elogios. Vou ao cinema no final de semana......esse eu quero muito ver.
Afinal, nossos clássicos estão sendo homenageados. kkk