Tarantino é um artista fascinado pela vingança: em “Kill
Bill”, acompanhamos uma exímia lutadora de kung fu se livrar da gangue de
criminosos que arruinaram sua vida; em “Bastardos Inglórios”, vemos um grupo de
judeus fazendo com os nazistas aquilo que meio-mundo sempre quis fazer, e um
psicopata misógino prova um pouco do próprio veneno pelas mãos de um grupo de
mulheres aventureiras em “À Prova de Morte”. Mesmo quando aparece apenas de
figurante, a vendeta deixa sua marca forte em qualquer película tarantinesca (“Eu vou usar métodos medievais em seu
traseiro!”). Agora, com “Django Livre”, ela encarna o ex-escravo homônimo
transformado em caçador de recompensas, cujo dever é basicamente “matar brancos
e ser pago por isso”.
Arrisco-me a dizer que “Django” exercerá, quanto ao tema,
muito mais apelo a muito mais pessoas do que qualquer outro filme de Tarantino.
Se uma aventura “kung-funesca” de vingança feminina ou mesmo de ódio ao nazismo
são elementos limitados (nem todo mundo se importa com as loucuras da Alemanha
ou com as atrocidades de sua imitação barata de Bonaparte, o Hitler), a
escravidão – especificamente a promovida pelo branco europeu – mostrou sua face
horrorosa em quase toda nação não-européia do mundo. Nós brasileiros, então,
estamos acostumadíssimos com esse tema e, da mesma forma que muitos judeus se
imaginam estraçalhando Hitler com uma saraiva de tiros de metralhadora, nós
sempre nos deliciamos com a idéia de um negro (ou um grupo de negros) se
voltando contra seus senhores e açoitando-os no mesmo pelourinho em que eles
eram antes castigados. Nossa idolatria a Zumbi dos Palmares está aí para provar.
Sim, a história se passa nos EUA e se centra na escravidão
norte-americana (muito mais horrenda que sua contraparte brazuca – não se
deixem enganar pelas imbecilidades românticas e coloridas de “...e o Vento
Levou”), mas o efeito é o mesmo. Portanto, será que entrega aquilo que nosso
revanchismo histórico tanto deseja? Honestamente, eu não sei. Se levarmos em
conta a mera contagem de cadáveres brancos, não resta dúvida que sim. Mas se a
inserirmos no contexto da relevância artística, aí o resultado é muito menos
empolgante do que a premissa ou os trailers deixam parecer. Pois é, eu não adorei Django; gostei com reservas. Para
alguém que esperava um grande avanço desde o quase perfeito “Bastardos...”, a
decepção não foi pouca: “Django Livre” está muito mais próximo dos filmes
experimentais e irregulares de Tarantino (“Jackie Brown”, “Kill Bill – Vol. 2”,
“À Prova de Morte”) do que de suas obras-primas maduras e avassaladoras (“Cães
de Aluguel”, “Pulp Fiction”, “Kill Bill – Vol. 1” e “Bastardos Inglórios”).
Terei umas boas páginas para explicar minha visão (e tentar aplacar a ira das
sempre presentes tarantinetes), mas aproveito logo para resumir: “Django” sofre
com um Tarantino auto-indulgente, descontrolado (ou melhor: excessivamente
afoito) e quase previsível, como se fosse uma paródia de si mesmo.
“Chocolate é bom, mas demais enjoa.” Desde que despontou,
Tarantino se tornou o objeto “homenageado” preferido de cineastas amadores,
cuja ignorância da verdadeira essência tarantinesca os limita a entulhar seus
filmes com referências pop desenfreadamente e se esquecer de contar uma
história original. Eu diria que “2 Coelhos” sofre do mesmo problema, mas não
creio que seu diretor tivesse apenas Tarantino em mente quanto produzia a obra
– os fãs do filme é que são particularmente insuportáveis (cada vez que alguém
diz que “2 Coelhos” é melhor que um filme de Tarantino, um cinéfilo vira
homem-bomba e explode um multiplex lotado). Agora, novamente, parece que o
próprio diretor perdeu o tato com a produção e termina se parodiando,
entregando-nos aquele que talvez seja seu filme mais lotado de referências,
homenagens e elementos pop (pois é, batendo mesmo o escandaloso “Kill Bill –
Vol. 1”) e um dos menos impressionantes em termos de narrativa. É um contraste
bem visível se você compará-lo com seu brilhante antecessor, “Bastardos
Inglórios”.
No “European spaghetti” de Tarantino, acompanhamos três
narrativas diversas (Shosanna, os Bastardos e Coronel Landa) que lentamente se
convergem em um final inimaginável e bombástico. O mais estranho é que a obra não
lança mão de twists forçados ou de um
ritmo frenético para fazer cair o queixo da audiência: é tudo uma gradação tão
calma e paciente que, quando atinge o clímax, nada mais resta à platéia senão o
atordoamento. Cada núcleo dramático, não obstante, possui elementos únicos
sobre os quais os personagens dos demais núcleos são ignorantes e, como num
quebra-cabeças, o produto final só é completo com a união dessas partes
distintas. Efetivamente, temos três grupos que, desconhecendo as trajetórias
uns dos outros, caminham inexoravelmente para um desfecho quase kármico. E
conseguir juntar tudo isso com uma homenagem sincera ao poder do cinema, cenas
longérrimas (o bar nazista) e cultura popular é simplesmente coisa de gênio.
“Django Livre”, por sua vez, foca-se em um único personagem
– seu protagonista –, trás uma narrativa linear e uma história muito menos ambiciosa:
Django é liberto, passa algum tempo como caçador de recompensas (e a maior parte é retratada através de
montagens), parte em busca da ex-mulher ainda escravizada, enfrenta alguns
problemas com o vilão sádico que a “possui”, mas, no fim, consegue o que quer.
Um tanto frustrante para quem saboreara a grandeza de filmes como
“Bastardos...” ou “Cães de Aluguel”. Ora, mas “Kill Bill – Vol. 1” talvez seja
ainda mais simples do que isso e eu a considero uma das grandes obras de
Tarantino. Como é que pode ser?
Aí é que está: o primeiro “Kill Bill” pode ser diminuto, mas
é consistente e faz um uso sábio de sua duração. “Django Livre”, por outro
lado, é instável e inseguro. Se aquele era um mosaico pop assumido, este tenta
ser várias coisas ao mesmo tempo e vira um poço de contradições: é uma história
simples contada de forma grandiloqüente, um western típico embrulhado com
referências contemporâneas (há até rap
na trilha sonora!), um enredo linear que insiste em quebras desnecessárias de
cronologia, etc. Não poucas vezes eu tive vontade de pular ou adiantar algumas
cenas de valor puramente estético para continuar com a bendita história. E se
“Pulp Fiction” conseguiu amarrar todos aqueles núcleos dramáticos com onze minutos a menos, o aproveitamento da duração em “Django Livre” fica próximo do
de “O Hobbit: Uma Jornada Inesperada”.
Mesmo estilisticamente Tarantino, excitado demais para
escolher apenas um tom, resolve jogar todo seu conhecimento enciclopédico no
filme em detrimento da consistência. Por exemplo, peguemos a longa viagem de
Django e King Schultz ao lado de Calvin Candie: neste exageradamente longo trecho
de película (foi como se Tarantino quisesse levar a platéia a passeio, e me
surpreendo por ele não ter incluído o trajeto inteiro em tempo real) eu perdi a conta de quantas trilhas sonoras
diferentes o diretor usou (no mínimo, quatro – e duas em menos de dois minutos,
ao final). Noutro momento, ele resume a vida de Django como caçador de
recompensas em uma montagem pouco inspirada, que termina com um texto
expositivo em créditos ascendentes e é cortada para uma exagerada introdução de
Mississipi, em letras garrafais cruzando a tela da direita à esquerda. Esse
descontrole “pop” seria perdoável (e desejável) em “Kill Bill - Vol. 1”, que
era uma bagunça por natureza, mas em “Django” ele provoca um desagradável
contraste.
Outro exemplo, e bem mais grave: durante o ataque da
nascente Ku Klux Klan, o diretor inicia a cena com um plano dos membros
galopando em direção a Django e Schults, e depois a corta para o passado e
retrata o grupo ainda se organizando (e discutindo alguns problemas de
“figurino”). Logo depois, retorna a onde parou, no “presente”. Tarantino pode
ser famoso por suas quebras de cronologia, mas aqui os cortes são confusos e
desnecessários, pois se trata de uma narrativa estritamente linear. Além do
mais, eles se dão em cenas muito curtas e diversas e envolvem pouquíssimo
espaço de tempo, deixando claro que o diretor está preterindo a concisão em
nome do exibicionismo estilístico – algo bem grave para alguém que praticamente
reinventou a técnica. Ainda na mesma cena você perceberá que ele faz uso de um
humor pastelão que beira o infantil. O filme retrata os membros da KKK como
patetas incapazes de fazer dois furos em um pano, o que não seria um problema caso,
mais uma vez, não divergisse absolutamente do teor da obra. Mesmo o diálogo é
bastante inferior ao que estamos acostumados com alguém do porte de Tarantino,
e eu não sabia se estava achando um tanto de graça ou tentando esconder minha
vergonha-alheia com alguns risinhos amarelos.
E toda esta cena, aliás, é inútil. Poderia ser descartada do
filme sem qualquer prejuízo para o enredo ou o desenvolvimento de seus
personagens (ela basicamente nos ensina que Django pode atirar a longa
distância. Só.)
Como se a irregularidade da direção e do próprio enredo não
fosse coceira atrás da orelha o suficiente, alguns dos momentos mais climáticos
da obra copiam elementos de “Bastardos Inglórios”, pondo em xeque suas
pretensões de originalidade. Quando Schultz elimina um dos antagonistas do
filme, precedendo um grande tiroteio, o método por ele usado é quase idêntico
ao que os Bastardos vestidos de garçom usaram para neutralizar os soldados
nazistas nas portas do cinema, e o desfecho que Django dá a Candieland é
muitíssimo similar a um dos desfechos de “Bastardos Inglórios”. Tarantino
sempre se orgulhou de roubar (e ele usa exatamente este verbo) elementos de
outras obras e de lucrar com o resultado (daí o apelido de “Diretor DJ”), mas
fazer isso com as próprias obras não dá certo e instila no público um senso de
tapeação.
Apesar de acumular problemas, ainda estamos falando de um
filme de Tarantino. Ou seja, quando ele acerta... céus, como acerta! Há cenas
aqui tão bem escritas (e tão bem distribuídas) que, a cada ameaça de tédio pelo
ritmo inconstante, nosso humor é renovado pelas lufadas de genialidade do diretor.
A discussão entre Candie, Schultz e Django na Casa Grande de Candyland é o
equivalente do filme à cena do bar em “Bastardos...”: lenta, construtora de
formidável tensão e se concluindo com a revelação inesperada de um segredo (pensando
bem, creio que esta é mais outra autocópia do diretor - que feio!). Minha
favorita é, de longe, a chegada de Schultz e Django em sua primeira cidade -
seguida de uma hilária (e brutal) contenda entre ambos e o xerife do lugar. E,
apesar das vacilações ocasionais, o humor deste western é afiadíssimo, talvez o segundo melhor da carreira de seu
criador (não tem como superar “Kill Bill - Vol. 1” e seus membros cortados que
jorram sangue com mais força e volume do que uma mangueira de bombeiro).
Christopher Waltz encarna o gentil e ácido King Schultz com perfeição e supera
DiCaprio em sua interpretação do estereotipicamente perverso Calvin Candie -
talvez eu tenha gostado mais do vilão se ele tivesse passado mais tempo em tela
ou tivesse cometido atos de verdadeira
brutalidade. Pois é, da mesma forma que Django, um escravo sendo comido vivo
por cachorros foi pouco impressionante.
E há mais um elogio que nunca imaginei que faria: dou meus
parabéns à dublagem brasileira, que apresenta um trabalho de altíssimo nível.
Por causa de circunstâncias infelizes não pude assistir à película legendada -
e ainda recomendo que essa seja a prioridade de qualquer cinéfilo - e tremi,
naturalmente, diante do que a típica incompetência de nossos dubladores poderia
fazer com o filme - justamente um filme de Tarantino! Qual não foi minha surpresa ao ver que tudo saíra ok -
na verdade, bem mais do que ok. É impressionante a conservação do linguajar
culto e pomposo do doutor Schultz e das divagações pseudo-científicas do
desprezível Candie (espertamente traduzidas como “crioulogia”). É um alívio
tremendo finalmente ouvir palavrões em abundância, com inúmeros “c#ralhos”,
“p#rras” e “p#tas” transbordando das bocas dos personagens como uma gloriosa
cascata de profanação. Sim, algumas piadas foram inevitavelmente perdidas (eu
fui o único da sala que riu quando Stephen confundiu o nome de Schultz por
“Shitz” - “merdas”, em inglês), mas o esforço geral da tradução foi admirável -
o que agora me dá a certeza de que, quando queremos fazer algo direito, não há
desculpa para não fazê-lo. O bom trabalho da dublagem me fará ser ainda mais
rigoroso com ela: ora, se com “Django” um grande resultado foi obtido, por que
continuar tratando tantas outras obras de maneira leviana?
“Django Livre” é mais um exercício de estilo e de homenagem
a terceiros do que uma obra firme e independente. Assim como “À Prova de Morte”
ou “Jackie Brown” (e em maior escala que ambas), é uma produção divertidíssima,
mas não marcante. Suas quase três horas, mesmo já fruto de cortes na pós-produção,
parecem infladas e o descompasso de seu diretor nas referências que tanto adora
fazer chega a enjoar. “Django” possui bem mais brancos morrendo pela revanche
de um ex-escravo do que “Bastardos” possui nazistas nas mãos de judeus, mas é
este último que carrega, digamos assim, um maior “índice de satisfação por
morte”. A prova cabal de que qualquer coisa, mesmo a melhor coisa do mundo,
enjoa quando em excesso.
NOTA: 7,0
Amo Tarantino e seu estilo exatamente pelo fascínio pela vingança.
ResponderExcluirAdorei e concordei com seu texto. Só discordo um pouco quando diz que o filme é focado no protagonista. Tive uma visão ampla de protagonistas. Acho que o trio se uniu bem.
MAs, visão pessoal.
abraços
Achei um filme excelente, e nem sou tão fã de Tarantino assim. Minha humilde resenha:
ResponderExcluirhttp://cinemagia.wordpress.com/2013/01/21/resenhas-django-livre/
Um abraço
Tommy